Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Aos 90, plantando lavoura de amendoim

Edição nº 1691 - 06 de Setembro de 2019

O sitiante Octávio Augusto Borges da Silva nasceu em 1929 em um local que ele denomina de “vertente do Açude”, ali pelas bandas da comunidade dos Vitorinos. Filho de Belmiro Justino da Silva e Jenoveva Inácio de Jesus, no último dia 7 de julho reuniu na sua pequena fazenda seus dez filhos, noras, genros, netos e bisnetos para celebrar seus belos 90 anos, demonstrando um vigor e uma lucidez surpreendentes. Leitor assíduo do Jornal ET, nos prometeu uma entrevista para falar de seu gosto pela leitura, pelo amor à terra e pelas andanças pelo país até se encontrar com sua cara metade, a simpática, dona Emília Alves Borges. E no vai e vem da vida passaram-se dois meses até que nos recebeu em sua oficina de trabalho, junto à sua indefectível Brasília amarela, desculpe, bege. Vamos ao papo. 

 

ET - Vamos começar da gênese...

Octávio - Nasci aqui na vertente do Açude, nas terras da propriedade de meu pai, Belmiro Justino da Silva. Ali cresci ao lado de meus 11 irmãos, éramos seis homens e seis mulheres. Eu era o nono. A fazenda era muito grande, campo, cultura, mata... daqui onde estamos ia até à rodovia (Araxá/Franca), no DER. Ali eu nasci e ali vivi até os 18 anos, trabalhando na lida diária do campo. Fazia de tudo, mas me especializei mesmo foi na carpintaria, profissão de meu pai. Ele fazia de tudo com madeira, dos telhados, bancos à carros de boi...

 

ET -  E os estudos. Naquela época havia as escolas rurais que funcionavam nas casas de algum fazendeiro ou até mesmo em prédio próprio, como a Escolinha dos Vitorinos. Foi lá que o Sr. estudou?

Octávio – Não. Estudei na Escolinha da Vargem Grande, que fica depois do Açude, com o Prof. Álvaro, já bem velhinho, por isso estudei pouco, fui até o 3º, 4º ano... O que aprendi mesmo foi na lida diária na fazenda. Nosso pai produzia café, arroz, milho, feijão, mas a profissão dele, mesmo, era a carpintaria. Tinha também engenho de cana, fazia cachaça, rapadura. E aprendi também muita coisa no trecho. 

 

ET - Como assim, no trecho? Nas andanças da vida?... 

Octávio – Isso, nesse mundão velho de Deus. Como eu disse, éramos 12 filhos. A educação em casa era também muito importante e os pais eram muito severos. Era assim, enquanto os filhos não completassem 18 anos, o pai não entregava o registro. E como sair de casa sem documentos? Quem não tem documento sofre muito, a gente era ninguém. Quem iria nos dar emprego, confiar na gente, não é mesmo? E nos criamos ali todos juntos e quando completávamos 18 anos, os homens tinham que prestar o exército. Era uma obrigação de nosso pai. 

Engraçado é que meus cinco irmãos mais velhos serviram o Exército, mas quando chegou minha vez, em 1947, eu fui me alistar em Uberaba e fui dispensado. 

 

ET - Por quê? 

Octávio - Maneirou a situação, a guerra de 39 acabou... Não precisavam mais de soldados. Recebi meu certificado de Reservista, está até aí, e vim embora. Uma coisa curiosa. Você sabia que naquela época de guerra cada cidadezinha tinha o seu 'Destacamento do Exército'? Eu já perguntei isso pra muita gente e ninguém soube me responder. Onde ficava o destacamento da Força Expedicionária Brasileira aqui em Sacramento. Você sabe?

 

ET - Não, não sei não. Sei que o Exército mantinha na cidade uma corporação do Tiro de Guerra que funcionava ali na esquina entre a av. Capitão Borges e a rua Major Lima... E você ficou sabendo onde funcionava?

Octávio - Sim, era lá no Capão do Mel (região próxima ao aeroporto municipal – grifo nosso) Quando meus irmãos mais velhos estavam no Exército prestavam serviço ali naquela região. Era ali que eles faziam todo o treinamento. 

 

ET - Bom, mas sorte sua que a 2ª Grande Guerra terminou em 1945, dois anos antes de completar seus 18 anos, se não...

Octávio -  Eu estaria lá... Mas passei por um outro tipo de sofrimento que me deixou marcas, no Paraná. Logo depois de dispensado do exército, com minha reservista na mão entrei na autoescola em Uberaba, tirei carta e fui trabalhar em carro de aluguel, um caminhãozinho toco. Fui pro pontal do Triângulo, Goiás, Paraná... Em 68 anos de carteira só tive quatro multas: uma por conta do cinto de segurança, logo que passaram a exigir; a outra, estava dirigindo sem os óculos; a terceira, o guarda me multou por conta de uma lanterna de ré que não acendia, por conta de barro na fiação e a última, extintor vencido. Tem três coisas que não gosto, multa, juros e aluguel (risos).

 

ET - Você disse há pouco que passou por “outro tipo de sofrimento”. O que aconteceu?

Octávio - Longe de casa, convivendo com gente estranha, cheguei a passar fome. Eu estava trabalhando em Centralina (MG) quando recebi uma notícia que meu irmão tinha sofrido um acidente no Paraná. Rumei pra lá, mesmo contrariando o patrão e fiquei por lá uns três meses, com ele no hospital, até que o dinheirinho que ganhei em Centralina acabou... Fiquei sem dinheiro, sem serviço, sem nada, sem comer por quase três dias. Até que consegui um emprego na panha de café. Sabe com quem? Com gente aqui de Sacramento que tinha se mudado para lá... da família Scalon. Olha que coincidência.


ET – Depois dessas andanças todas, quando é que o Sr. se cansou do trecho e arrumou uma companheira para te prender?

Octávio - Veja como é a sina da gente. Saí daqui solteiro, girei, girei, arranjei muita namorada por aí e vim casar aqui na Capelinha nos Vitorinos, em 1954, com a Emília Alves Borges, vizinha aqui da região do Açude. As duas famílias de tradição católica, o padre Saul Amaral fez nosso casamento e batizamos todos os filhos. Naqueles tempos íamos todos à missa na Capelinha, a cada segundo domingo do mês. E, em agosto, nossos pais nos levavam para a Festa de Na. Sra. da Abadia, a principal festa religiosa da cidade. E me lembro que a gente ia e, nós tudo menino, ficávamos brincando na grama que havia no jardim. Somos também muito devotos dos Santos Reis. 

 

ET - É mesmo, então o Sr. gosta de Folia de Reis? Canta também, toca?...

Octávio - Canto e toco violão e berrante (risos). Faço a sexta voz na folia. Quer ouvir? (perguntou, já pegando um aparelho e soltando a gravação de sua folia) Olha o violão, sou eu... Olha a voz, sou eu... (E de repente, pega também o berrante encostado a um canto da oficina e tira algumas notas, já com certa dificuldade) Perdi alguns dentes, o que prejudica a embocadura, mas ainda toco alguma coisa... E joguei também muito futebol aqui na roça.

 

ET – E como foi Da. Emília na sua vida... Hoje tem casamento que dura poucos meses, vocês juntos aqui há 65 anos...

Octávio - Emília foi sempre uma grande companheira. Me deu dez filhos, Ademir, Aderlene, Moacir, Adevarlene, Adevalmir, Adevarnelice, Melchior, Jucerlene, Eliete e Sandra. Uma família unida... Os filhos foram embora, se casaram e cada um mora na sua casa, e nós ficamos os dois aqui e vamos ficar até o último dia. Emília sempre me ajudava nas lidas, até tirar leite ela tirava. Fiz um casamento que valeu a pena. Ainda hoje ela prepara nossas refeições. Por falar nisso, aceita um cafezinho?

 

ET - Claro. (E nos dirigimos para uma cozinha onde havia um belo fogão de lenha ardendo em brasas, madeira seca que o próprio Seu Octávio conseguia nos pastos, levando assim o papo para o rabo do fogão). Voltando ao Seu Belmiro, que grande lição ele deixou para os filhos, além da educação escolar, da leitura? 

Octávio - Nosso pai nos deixou grandes lições, primeiro, a educação, ele fazia questão de mandar todos pra Escolinha. Nos mostrou a importância de Deus na nossa vida. Lia muito. Isso ele também nos ensinou, a leitura. Depois, ser honesto e direito nos negócios para não sofrer. E sobre isso, ele recomendava três coisas: trabalhar, economizar e nunca gastar mais do que ganhava. Papai sempre nos recomendava isso e eu passei para os meninos. Papai tinha muita fazenda, mas falava para economizar para ter sempre um lugar onde cair morto no fim.

 

ET - Aos 90, com um sítio de cinco alqueires para tocar, não é melhor ficar tranquilo na cidade, ao lado dos filhos?

Octávio - Eu e Emília nos acostumamos aqui. Com essa idade, ela um pouco mais nova, levamos uma vida ativa, ainda trabalhando aqui e ali. Se não fosse esse joelho... (queixa-se) Mas, mesmo assim, faço a lida toda, o que for preciso, também costumo plantar um pouquinho, mas este ano só plantei amendoim. Não ando prestando pra muita coisa, não, sinto muita dificuldade por causa do joelho. 

 

ET - - É, tem muita história debaixo desses canjerana...

Octávio - Isso tudo aqui (mostrando a casa) fui eu que fiz e nunca trabalhei nem de servente. Mas eu fui nessa casa pedreiro e carpinteiro. Fui também motorista, peão de boiadeiro. Adorava tocar boiada, fui a Barretos três vezes levando boiada do Jerônimo Cardoso. Meu irmão, Amélio Justino, trabalhava pra ele e também um primo nosso, que eram dois peões de primeira e me chamavam pra tocar berrante. Hoje não toco mais, por falta de alguns dentes. Todo instrumento de sopro precisa da arcada dentária completa, senão não toca. 

 

ET - Há pouco você disse que jogava futebol. O que mais, tem veia política também como seu filho, Reizinho?

Octávio - De futebol eu gostava muito, joguei muito aqui na roça e até no Paraná. Sou santista de coração, do tempo do Pelé, Mengálvio, Coutinho, Pepe... Uma vez assisti a um jogo do Santos em Uberaba e levei os meninos. Agora, política, nem pensar. Da família, só o Reizinho mexe com política, a gente votava, cumpria a obrigação. Agora, votar, sempre votei, até depois que não precisava mais. Só deixei de votar na última eleição. Eu até saí pra votar, mas os candidatos não me agradavam. Acabei voltando pra roça sem votar.

 

ET – O Sr. não perdeu nada. Vamos, então, terminando, Seu Otávio, falando de amor. Dizem que o Sr traiu a Da. Emília muitas vezes com uma Brasília... Estou vendo aqui, o Sr. tem três? Que paixão louca foi essa?

Octávio - É verdade. Depois da Emília e do Santos, minha outra paixão foi uma Brasília. Tenho três, duas delas, para repor as peças que estragam dessa primeira, que comprei 'zerinha' logo que saiu. Mas não deu certo, não. Tive também um Ford 47 e comprei um 46 pra tirar as peças. E esse deu certo, mas da Brasília não deu. Eu entendo bastante de mecânica e alguma coisinha faço aqui mesmo, mas geralmente levo pra oficina. Ainda dirijo muito bem. Acho que melhor do que antes. Abasteço sempre ali no Posto do Jaiminho e eles sempre brincam comigo. Mas está difícil trocar a carteira de habilitação, por conta dos óculos. Vou ter que largar mão de dirigir. 

 

ET - Fazendo um balanço de sua vida, se o Sr. morrer agora, acha que vai pro céu? 

Octávio -  Olha, tirando uns pedaços ruins, minha vida foi toda boa, 100% (risos). 

 

ET - Que resposta legal! A minha também, tirando os trancos e tombos que levei, foi tudo 100%. 

Octávio - Olha, é mesmo! Nunca tive briga, não tive encrenca, fui feliz. Acho que vou pro céu. Quero pendurar a chuteira, aliás já pendurei há muito tempo, ela está muito surrada.  E quero me acomodar, porque não vou fazer muita coisa de futuro, não. Agora é cuidar do que tenho, que é o lugar pra eu cair morto. E toda noite rezo e agradeço a Deus a Santos Reis pela minha vida e peço felicidades para os meus filhos.

 

ET - Seu Octávio, aos 90, não te desejamos 'muitos anos de vida', mas 'muita vida nos anos que te restam'. E vamos cantar: “Minha Brasília amarela tá de portas abertas pra mode a gente se amar...”