Samuel Luiz Araújo
Notário em Minas Gerais, doutorando em direito das relações econômicas internacionais (PUC-SP)
A ação terrorista em Paris, que matou friamente chargistas e editores do semanário Charlie Hebdo, assim como todos os atos violentos cometidos por quem quer que seja, é altamente condenável e merece a reprovação de toda a sociedade internacional.
Não há justificativa para assassinar pessoas que se sentem livres para manifestar as suas vontades, preferências, crenças e qualquer outra opção que tenha como objetivo a melhor maneira de se exprimir e viver.
Isso vale para a expressão de sua arte, de sua convicção religiosa, de sua cultura e contracultura, de sua opção sexual, enfim, tudo o que promova a sua dignidade como pessoa, merecendo o respeito dos demais.
Quando alguém, uma pessoa ou um grupo, se sentir hostilizado, deve recorrer aos meios democraticamente postos ao seu dispor, pois “para cada direito existe uma ação correspondente”. O brocardo, embora juridicamente discutível, tem o seu valor. Aquela máxima da teoria da responsabilidade, tão bem expressa por Sílvio Rodrigues, é mais ou menos assim: “O fundamento da responsabilidade é o que obriga o causador do dano a indenizar”.
Mas o ocorrido em Paris nos traz uma reflexão que talvez tenhamos adiado por mais tempo do que deveríamos. Veja a história: José, menino bom e estudioso, é constantemente ridicularizado por seus colegas, que o chamam de narigudo e feioso. Cresce sofrendo com o achincalhe. Em um determinado momento de sua vida, fatigado de tanta humilhação, resolve tomar uma atitude contra aqueles que sempre o ofenderam. Teria, então, duas opções, sendo a primeira recorrer aos meios legais para obstar os atos dos ofensores e a segunda recorrer ao uso da força. Ele opta pela segunda e mata os seus algozes.
Já se disse que o uso da violência é condenável. Absolutamente nada o justifica, notadamente em tempos em que se busca uma sociedade livre, justa e solidária.
Do lado de fora do cenário, nós, absolutamente estranhos às pessoas em contenda (José e seus agressores de um lado; jornalistas franceses e terroristas islâmicos de outro), podemos oferecer algumas opções para resolver o embate. De modo instantâneo, repudiamos veementemente as ações terroristas e solidariamente nos colocamos ao lado dos infortunados jornalistas franceses (Je suis Charlie). Em menor número, aqueles que se solidarizam com José e com os povos islâmicos em geral, levando-se em consideração que o islamismo veda qualquer tipo de reprodução do profeta Maomé e que as charges, embora inofensivas para os praticantes de outro credo, são ofensivas para os adeptos do islamismo (Je ne suis pas Charlie).
Ao que tudo indica, o ataque terrorista obriga a revisitar o dogma da liberdade de expressão. A liberdade de se expressar tem sim um limite, que é exatamente o direito do outro. A minha minha liberdade de desenhar deve respeitar a liberdade do outro de ter a crença que entender pertinente. A minha liberdade de fazer o que quiser deve respeitar a dignidade da pessoa do outro. Assim como nada justifica a violência, nada justifica o desrespeito à dignidade do outro.
A violência sempre nos espanta e está condenada, pois nada a justifica e o repúdio a ela deve ecoar.
Mas, ainda analisando-se os fatos, não se pode negar que é também surpreendente o fato de que a própria nação inspiradora do ideal de liberdade (liberté, égalité, fraternité) vê-se agora estimulada a revisitar a sua teoria máxima, colocando-lhe freios (e quiçá contrapesos).
Visto dessa maneira, talvez seja a (boa) hora de, outrossim, revisarmos nossas atitudes e pedirmos desculpas por abusos porventura cometidos. Isso não é se curvar diante do medo, mas sim reconhecer os erros e procurar mitigar os seus desastrosos efeitos. Respeitemos as escolhas e aprendamos a não ofender os outros. Quem sai ganhando é a paz.
(Extraído do jornal Estado de Minas, edição 22.01.2015, página 7/ Opinião)
Assim como nada justifica a violência, nada justifica o desrespeito à dignidade do outro