Fenelon Fernandes de Matos, 82, nasceu e viveu na região dos Palhares e nutre um carinho muito grande pelo lugar, embora não pertença mais à família. “Visito sempre o lugar, nasci ali e lá vivi até os 28 anos, quando saí casado e fui para Ponte Alta, depois para Ilha Solteira e Marimbondo, mas sempre estava visitando a família. Tenho amor por aquilo ali”, diz e recorda dos vizinhos, um deles João Fernandes Dorneles Vargas, que nasceu João Canuto, filho de Maria Canuta (o pai de João, Fenelon não conheceu).
“- Ele tinha um irmão, o José Canuto e duas irmãs, Carolina e Jovelina. “O João e o José, os dois falecidos, nunca se casaram, mas o engraçado é que a Carolina casou com o João da Chiquinha, aí ela faleceu e a Jovelina casou com ele (cunhado). A Jovelina e o João da Chiquinha tiveram filhos, eles foram embora daqui e nunca mais ninguém soube deles”, conta, justificando que a homenagem prestada pelo poder público a João Canudo foi muito justa. Veja, a seguir, o resumo da entrevista.
‘‘João era a bondade em pessoa’’
Falando de João Canudo, como ficou conhecido, Fenelon recorda algumas passagens. “João era nosso vizinho. Ele sabia duas coisas: buscar remédios e tocar a gaita. A família era muito pobre. João morava com a mãe e os irmãos num rancho de capim, aliás todos nós morávamos, naquela época. Eles viviam nas terras do Belisário Pereira de Souza. João era mais velho que eu, já era rapazinho, quando nasci, mas ainda criança, me lembro dele buscando remédios na Santa Maria e comendo na casa da vizinhança. Ele trouxe muito remédio pra nós, meu pai, minha mãe, para mim, a Dina, pra todo mundo. Foram mais de 50 anos carregando remédios e comendo com a vizinhança. Onde ele chegava, comia. Era muito calmo, tranqüilo, era a bondade em pessoa”.
Conta mais que a viagem de João a Santa Maria durava dois dias. “Santa Maria era o ponto de pouso dele, enquanto o Sinhô Mariano e o Quinca Honorato manipulavam os remédios. O trajeto dele era pela Usina Cajuru, ele não passava pela cidade. Era uma volta muito grande passar por Sacramento. Havia uma pinguela, por onde passávamos. Ele passava por ali. Eu também passei muitas vezes na pinguela, muitas vezes fui a pé até Santa Maria, buscar remédio pra família”.
Segundo Fenelon, apesar do seu jeito diferente, João sabia das coisas. “João Canudo não era bobo, se o Borá estivesse cheio, ele dava a volta pela cidade. Depois ele mudou pra perto do Córrego do Jacá, no Areião. E quando fizeram a Vila Sinhazinha, o Edson Pícolo e outros espíritas levaram 'ele' pra lá. Ele viveu na Vila até morrer”, diz Fenelon, ao lado da esposa Dina, que ressalta o seu valor.
“- João era o farmacêutico da época. Antigamente era muito difícil, não havia médicos, só a farmácia do Labieno. O povo tratava era com poções. A gente falava, ele escrevia num papel o nome. A gente explicava o que estava sentindo, entregava a garrafa e ele ia buscar a encomenda. Ia num dia e voltava no outro. Ele tinha a freguesia de encomendas. João era um recurso que tínhamos pra buscar os remédios”.
Perguntado se o Cel. José Afonso, Eurípedes Barsanulfo ou Pe, Victor Coelho, não mereciam mais do que ele uma estátua, Fenelon respondeu: “Jesus Cristo era do lado dos simples, dos humildes e isso o João foi. Ele merece essa homenagem. Era um homem bom, a bondade em pessoa, uma pessoa do bem, que só fez o bem”.
“Parece que ele não era muito normal, não, mas bobo ele não era”
De acordo com Fenelon, João Canudo não era bobo. “Parecia até que ele não era muito normal, não, mas bobo ele não era. Sabia ler, escrever, aprendeu com o professor José Domingos, lá nos Palhares. Conhecia e sabia contar dinheiro. Ele era muito vivo. Falaram que ele buscava os remédios grátis, não é verdade. Ele , cobrava, tinha uma tabelinha de preços. Ele chegava com a garrafa de remédio, entregava e a gente perguntava “Quanto é João?”. Aí ele dizia: “duzentos réis”. Depois virou cruzeiro e ele dizia “um cruzeiro”. E se a gente desse menos do que ele pedia, ele ficava bravo. Mas quando não podia dar, fazer o quê?”, recorda, rindo.
Lembra mais Fenelon, que João Canudo era bem sovina. “Ele tinha muita confiança no Belisário Pereira de Sousa e João Justino Cintra, (tio do João Moicana), que guarvam o dinheiro que ganhava. Ele botava numa sacolinha e entregava pra eles guardarem. João não gastava nem um tostão. Aliás, ele gastava sim, com bombinhas. No tempo das festas juninas ele comprava uma porção de bombinhas, levava pra casa e lá ficava soltando, pulando e dando gargalhadas. Era quando a gente o via dar risada. Ele só gastava dinheiro com as bombinhas”.
Questionado por que achava que João Canudo não era uma pessoa muito normal, Fenelon justifica suas atitudes extranhas. “Digo que ele não era normal, porque a roupa dele ficava em trapos, ficava com uma roupa até acabar, sempre suja, era andarilho. Ele tocava uma gaita e ficava dançando sozinho. Na estrada, ele imitava os carros, segurava as capangas com as mãos e saía correndo, fazendo o barulho dos carros com a boca. Isso não era muito normal. Outra particularidade de João é que ele só andava descalço. Ele só passou a usar botina quando foi morar na Vila, antes só vivia descalço. E da calça arregaçada (dobrada) ou cortada na barra? Quem não se lembra?. Ele dizia que era porque uma vez ele enfiou o dedão num buraco na barra da calça, embaraçou e caiu, quebrando as garrafas de remédio. Aí nunca mais deixou a calça até os pés”, recorda mais.
Como diz o seu chara, João Lopes, lembrando de João Canudo, que chegou a morar no Areião: “João Canudo foi i inventor das calças 'capri' ”.