Dionísia dos Reis Ferreira de Souza, filha de Divina Prudêncio (Diva) e Dionísio Ferreira da Cunha, é uma aguerrida lutadora. Beirando os 70, diz que há quatro anos vem falando que tem 70, porque gosta da marca. Gosto da idade, me faz mais velha, mas me faz mais experiente. Mais mulher, destemida e forte, mas muito mais cheia de amor pra dar”. E foi com essa bravura que, nas andanças da vida, pariu sete filhos e adotou outros 13. Mas gosta de dizer que pariu todos, porque para ela, não existe filho adotivo existem filhos, são todos filhos. No Dia das Mães, o ET presta esta homenagem a uma negra fantástica.
ET - Filha da Diva Lavadeira, que também fez história na cidade... onde você nasceu e quantos irmãos tem?
Dionísia - Bem na divisa entre Sacramento e Conquista. Como eu nasci de lá do córrego, sou conquistense, de Engenheiro Lisboa. O Lageado corta a região ali pelos lados da Farinha Podre, onde passava o trem. Mamãe morava ali quando me deu à luz. Antes de mim, nasceu a Maria Demerci, depois vieram as gêmeas, eu, Dionísia dos Reis e Maria das Graças e encerrou com o caçula, Luiz Antônio. Mas só nasci ali na Estação do Trem, porque três meses depois já estávamos morando em Sacramento, na rua Santa Cruz, no Rosário.
ET - O 'dos Reis' no seu nome é porque nasceu no Dia dos Santos Reis?
Dionísia - Eu e Maria das Graças nascemos na véspera, no dia 5 de janeiro de 1950, por isso a homenagem aos Santos Reis que foram adorar o Menino Jesus, nome que carrego com muito orgulho. Fruto da devoção dos meus pais, que abracei por toda a vida.
ET - Como foi sua infância, adolescência...
Dionísia - Morávamos ali bem atrás da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e posso dizer que tive uma infância ótima. Naquela época era mais fácil criar os filhos, as coisas eram mais fáceis. E brincávamos juntos, a negrinha do Rosário com o Rubensmar (Tatu), o Lambreta, Cacau, os filhos do Quinto Cerchi, o Branco da dona Florinda, o Vô, filho do seu Olavo Caramori, as filhas de Amadeuzinho... Tivemos uma infância feliz. Éramos poucas meninas, mas tudo família. Engraçado que eu era muito gaga e o pessoal ficava me remedando. E como eu não levava desaforo pra casa, partia pra cima, batia, dava 'coro' neles, batia em todo mundo... (risos). Quando Da. Diva chegava da lavação já estava sabendo de tudo e me descia a vara de marmelo, que eu mesmo cortava no fundo do quintal, a mando dela.
ET – E ficava de mal de toda a molecada...
Dionísia - Que nada! No outro dia estávamos tudo junto de novo. Éramos muito felizes. Esses que eu citei e outros, cujos nomes não cito, que me desculpem, considero todos irmãos, independente de raça, cor, credo. Só que eu digo que sou irmã deles, mas nasci de noite e eles por serem brancos, nasceram durante o dia.
ET - Lembra do Chorão, um poço largo e fundo onde a molecada nadava, ali no córrego Jacá, no fundo da rádio Sacramento?
Dionísia - Vixe!!! Principalmente, eu. Era só chover, dava enchente, que a gente vazava pro Chorão. Mas de repente, a pedido da mamãe, chegava lá o João Tatim, cujos filhos também brincavam com a gente. E com uma correia tirava todo mundo do poço. Ele chegava lá, espreitando, e nós estávamos pulando de cima da cachoeira. Ele dava uma espirrada e era moleque e moleca correndo pra todo lado. A água do córrego era limpinha, a gente via o fundo... Boas recordações.
ET - Sua mãe, a Diva Lavadeira, era muito severa, mas muito trabalhadeira, muito zelosa, dedicada à família, né?
Dionísia - Sim, mamãe era muito brava, mas muito dedicada, trabalhadeira, zelosa mesmo e carinhosa. Foi uma lutadora. Quando nós nos mudamos pra Sacramento, eu com três meses, ela começou a arrumar sua freguesia. Naquele tempo, sem máquina de lavar, pelo menos por aqui, era comum a figura da lavadeira, uma espécie de diarista, como chamam hoje, que ia às casas para lavar a roupa da família. Suas primeiras freguesas foram a Da. Esperança, mulher do Ledo, que por sinal foram meus padrinhos de Batismo, e Da. Olga Bertolucci, mulher do padeiro Quinto Cerchi, que ajudaram muito na nossa criação e educação.
ET - Como você define sua mãe?
Dionísia - Trabalho, trabalho, trabalho... Mamãe era muito severa e uma trabalhadora incansável. Saía de manhã e voltava de tardinha. Muitas vezes, ela me levava junto, quando ia pra casa da madrinha Esperança. Me lembro muito de brincar no grande quintal da casa com as meninas, a Ivone, a Leida, os meninos, Walmor, o Tunin... Mariângela era neném... Mas a Diva foi toda a vida uma mulher forte, honrada, honesta. Naquela época, não precisava de assinar papel, não, mamãe era firme de caráter. Hoje em dia, assinam tantos papéis e não resolve, acabam dando o calote. Com mamãe bastava meia palavra, ela já agia. Quando eu buscava a vara pra apanhar, eu já ia chorando. Ela dizia: 'agora você vai ver o que é bater em filho dos outros'. E batia mesmo. Mas hoje eu reconheço, sempre fui a mais rebelde. Eu era muito levada, travessa.
ET - E o seu pai, o xará Dionísio?
Dionísia - Outro trabalhador. Morreu trabalhando, capinando, lá em Engenheiro Lisboa. Muito jovem, com pouco mais de 30 anos. Eles apostavam quem capinava fileira da 'rua', aquele espaço entre a lavoura. Papai era sempre o primeiro. Capinava, saía e começava outra 'rua'. E naquele dia não foi diferente, ele acabou uma rua e estava no meio da outra. O pessoal foi embora, como ele não apareceu, voltaram lá e ele estava caído em cima da enxada.
ET - Como foram os estudos?
Dionísia - Entrei na escola na idade certa, mamãe não descuidava. Ingressei no Grupão, a EE Afonso Pena Júnior. Na época, dona Corália era a diretora que, depois de longos anos, foi minha patroa na Escola Coronel. Foi um tempo bom de escola, de muito aprendizado, porque eu visava nas noutras pessoas, o que elas faziam, o que queriam fazer... E eu pegava firme, fui muito boa aluna. Só tive problema uma vez, quando uma colega me chamou de negra. Nós brigamos e saí correndo de volta pra casa. Nessa época, já morávamos numa casinha na, Escola Coronel, cedida à minha irmã, Demerci, zeladora da escola. Chegando em casa, falei pra mim mãe e ela não deixou barato. Voltamos ao Grupão pra tirar satisfação. Não me lembro bem dos professores, a exceção da dona Germoncina, que deixou saudade. Terminei o 4º ano no Grupão e, infelizmente, parei. Fui trabalhar na casa da Da. Jerônima Cruvinel, a Noninha, do Papinha, e na irmã dela, a Terezinha, como pajem. Eu era criança, digamos, uma criança tomando conta de outras crianças, mas ali me formei também. Me lembro também de ter trabalhado na casa do Dr. Dr. Juca, depois com os De Santi, a dona Joaquina do Joaquim da Telefônica.
ET - E quando chegou à Escola Coronel?
Dionísia - Demorou um pouco. Passei antes por uma experiência de trabalho em São Paulo. O engenheiro Antônio Montenegro morava aqui e a dona Adelina, mulher dele mudou-se para São Paulo e levou algumas adolescentes para trabalhar lá. E eu e minha irmã fomos duas delas. Não me lembro bem a idade, nem quanto tempo fiquei por lá. Sei que foram muitos anos, trabalhando com familiares de Da. Adelina, até que retornei. Mas minha irmã, Maria das Graças, está lá até hoje. Numa de minhas visitas a Sacramento para rever os familiares, comecei a namorar o Aldari Martins de Souza (Darico), filho de José Euzébio, o Geléía, e oito anos depois nos casamos e tivemos seis filhos: Carlos Henrique (Fuminho), Adriana, Lucineia, Gisele, Leslie (Negão) e Izabel Cristina. Darico morreu muito novo. E de um relacionamento com Benedito Jerônimo Filho, nasceu Flávia. Nós nos separamos e logo me mudei para Uberaba e lá vivemos 25 anos.
ET - Mas antes de se mudar, você trabalhou na Escola Coronel...
Dionísia - Exatamente. Minha irmã Demerci trabalhava lá, ela namorou, noivou e quando se casou, tivemos que sair da casa. Ficaram lá a Demerci e o marido e nós voltamos para o Rosário. Meu marido Darico trabalhava com os Crema, depois com os Loyola e depois com Paulo Araújo. E fomos também nos mudando e criando os filhos. Até que um dia muito feliz, muito feliz, a Ângela Almeida, foi até a minha casa e me deu um recado: “A Sandra Almeida, da Escola Coronel, quer falar com você”. Foi quando recebi o convite para ocupar a vaga de minha irmã Demerci, que havia sofrido uma convulsão e se mudou para Uberaba para fazer o tratamento, onde está até hoje. E ali na Escola Coronel permaneci 16 anos, até que pedi remoção para Uberaba, e me mudei a convite da minha irmã. Levei os filhos todos e lá fiquei por 25 anos. Trabalhei no Centro Interescolar Estadual de Línguas (CIEL), onde me aposentei.
ET - E retornou às origens?
Dionísia - Isso mesmo, aposentei-me e decidi voltar às origens. Tinha minha casa aqui, então, era voltar. Peguei umas 'passações' de roupa, mas fiquei mais como uma 'mulher do lar', como dizem. Mas sempre trabalhando, contribuindo, cuidando dos filhos de uma irmã do meu marido, residentes em Goiânia. E três anos depois Darico morreu. Mas não desisti, fui à luta para criá-los e crescer com eles. Hoje na minha conta tenho, sete filhos biológicos e 13 adotivos. Na verdade, tenho 20 filhos, para mim não existe filho adotivo, existem filhos... Hoje, todos adultos, casados e até com netos. Tenho hoje 40 netos e 43 bisnetos.
ET - Hoje, morando aqui com seu filho, Carlos Henrique, ex-atleta profissional, como o Leslie, o Negão... Dois craques aposentados. Que herança foi essa?
Dionísia - Não estão aposentados, não. Os dois participam da categoria máster, jogando por aqui e ali, quando convocados. Mas, realmente, são dois grandes craques. Os dois, também, dão aula de futebol e são olheiros. A herança veio do tio deles, o meu cunhado, Turunga - lembra? - que também morreu muito novo. Carlos Henrique herdou tudo, até o jeito de jogar. É o que eles têm pra levar pra frente. O Carlos formou atleta que hoje está no Real Madrid e o Leslie tem atleta que ele treinou e hoje está no Palmeiras.
ET - Olhando para trás, desde o tempo em que você brincava no quintal da Da. Esperança, enquanto sua mãe lavava roupas, que lição você tira disso tudo?
Dionísia - Saudades. Muita saudade. Gostaria de ter minha mãe, meu pai, meus amigos de antigamente que eu pregava o 'coro'... (risos). Até hoje, quando encontro, por exemplo com o Tatu, ele brinca: 'Me bate hoje', Eu tiro uma de João sem braço e saio de fininho...
ET - Neste domingo comemoramos o Dia das Mães, com seus 20 filhos, que mensagem você deixa?
Dionísia - (Emocionada, olhos rasos d'água) Não tenho palavras... Mas foi muita luta, muita dificuldade, apesar de antigamente ser mais fácil. Eu diria que cresci junto com meus filhos e agradeço a Deus por esta oportunidade. Hoje eu sou o que sou, graças primeiro a Deus e depois graças a eles.