Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Tereza e Regina: uma história de doação e superação

Edição nº 1482 - 11 Setembro de 2015

A dona de casa aposentada, Tereza Barbosa Pinheiro, tem 73 anos. É viúva de Geraldo Rezende Pinheiro, pais de duas filhas, Rejane e Regina Lúcia e uma neta, Fernanda. Uma família normal, não fosse o fato de Regina Lúcia, ter duas datas de nascimento, uma dos 54 anos de vida e, outra, 28 de agosto, em que comemorou 36 anos de paciente transplantada, contrariando até o que certos profissionais da área afirmam, com prognósticos de uma sobrevida em torno de 15 anos. Regina vive há quase quatro décadas com um único rim doado pela mãe.  Tudo começou quando, por um erro, segundo informa a família, durante uma cirurgia, o cirurgião lhe tirou o único rim que possuía confundido com um tumor que, até então, ninguém sabia. “Há quase quarenta anos as coisas eram muito diferentes, o médico apalpava e dava o diagnóstico. Ele fez a cirurgia e tirou o único rim que ela tinha...”, conta a mãe.  Regina é portadora de uma doença congênita conhecida como agenesia renal unilateral, que é a ausência de um dos rins. A decisão de Regina em relatar a sua história veio depois de ver no último domingo uma reportagem na TV, em uma matéria que o irmão vai doar um rim para a irmã e um médico disse na matéria que a expectativa de vida de um transplantado é de 15 anos. “- Quando o médico falou isso, olhei pra aquela cruz ali (mostrando na parede) e agradeci a Deus 36 vezes. Mas achei um absurdo Esse médico jamais deveria falar isso, tem é que dar esperança às pessoas. Quando fiz o transplante e perguntei para o médico Dr. Carlos Stabile, quanto tempo eu teria, ele me olhou, apontou o dedo para o alto e disse: 'Regina, tem validade, sim, mas só Ele é que sabe, Ele bate um carimbo de validade, mas não nos mostra qual é essa validade'. E já se passaram 36 anos...”, recordou em entrevista ao ET, que você vai ver agora: A bonita história de doação e superação de Tereza e Regina.

ET - Tereza, conta essa história direitinho.  Sua filha tinha um único rim e o perdeu numa cirurgia? Como aconteceu isso? 

Tereza - Regina tinha 16 anos e não menstruava, vivia doente, tinha tonturas, muitas cólicas. Aí a levei ao médico, expliquei os problemas dela, ele começou a apalpar, achou um caroço e falou: 'Ela está com um problema aqui, tem que operar' e mandou internar. Ele operou e tirou um negócio dela e disse que iria ficar boa. Só que ela piorou. Parou de urinar, foi inchando, inchando e aí ele mandou fazer uma chapa (raio x). Foi quando viu que tinha retirado o rim, mas nos consolou, afirmando: 'Ela via ficar boa, não vai ter problema, não, porque o outro rim vai funcionar certinho'. Só que Regina foi ficando cada vez pior e ele falou: 'Vai ter que levar pra São Paulo'. E aí bateu o desespero...

ET - Desespero por quê? Ela não iria para o recurso?

Tereza – A gente era muito pobre, eu trabalhava de empregada, o Geraldo trabalhava, mas ganhava pouco, a gente não tinha dinheiro pra ir pra aquele fim de mundo. Falei com o médico que não tínhamos condições, mas ele disse que o tratamento era só lá. Aí a Madalena Fraga e seu marido, Fernando, que é meu primo, tomaram conhecimento da situação e começaram a nos ajudar.  Vai um pouquinho daqui, um pouquinho dali, levantaram o dinheiro. Pagamos o taxista Baltazar (uma pessoa tão boa, tão caridosa e que teve uma morte tão trágica (recordando que ele foi assassinado por assaltantes durante uma corrida). Não havia ambulância, saímos daqui de madrugada de táxi com o Baltazar, a Madalena, o Fernando e o Irmão José, do Seminário, porque precisávamos de uma pessoa para nos guiar lá. E eu nunca me esqueci, no dia em que fomos para São Paulo. Eu tinha 37 anos, quatro meses e 11 dias... Chegamos já de tardezinha ao Hospital das Clínicas (HC).

ET - Vocês chegaram e Regina foi internada...

Tereza - Meu Deus, que horror! Aquele mundo de pessoas doentes nos corredores...   O Ir. José foi lá conversar, mas eles falaram que não havia vagas. E a Regina, uma 'pipa' de inchada, já fazia 40 dias que ela estava daquele jeito. Do HC nos mandaram para o Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, na Vila Mariana. Só que já era noite, mais de oito horas, teríamos que ir no dia seguinte.  A gente num cansaço só, sem comer, dinheiro pra hospedagem não tínhamos... 

ET – Onde passaram a noite?

Tereza - O irmão José pediu para o Baltazar nos levar para uma casa dos redentoristas, pra ver se poderíamos passar a noite lá. Ele chegou e sumiu lá pra dentro. Sorte nossa foi que o Pe. Gil, que havia morado aqui, estava hospedado lá para fazer um tratamento em São Paulo. Ele veio e disse que não poderiam ficar mulheres naquela casa. Mas Deus é tão grande, que ele disse: 'É gente da minha terra, eu vou dar um jeito'. Ele nos mandou, as três mulheres, pra um quarto e pediu que não saíssemos por nada, caso contrário ficaria ruim pra ele. E assim fizemos. Tomamos banho, padre Gil nos levou uma sopa e passamos a noite. No outro dia cedo, saímos para o hospital e lá ficamos o dia inteirinho. E o Baltazar sempre lá, com toda paciência. Por isso digo que somos abençoadas. Regina fez exames o dia todo. À noite disseram que ela ficaria internada, mas não falaram nada de rins. Só que eu não poderia ficar com ela...

ET - Aí vocês a deixaram internada e voltaram para Sacramento...

Tereza – Não, não, eu jamais deixaria 'ela' sozinha. Eu decidi que ficaria lá, pensando que seria por apenas uns dois, três dias.  Mas onde eu iria ficar? Foi quando me lembrei  de uma conhecida, que morava em Santo André, a Catarina, do Gasparino Januário. O Baltazar me levou até Santo André, fiquei na casa da Catarina e eles vieram embora. A Catarina e o marido dela foram uma bênção. Já no dia seguinte, eles me levaram ao hospital na vila Mariana pra visitar a Regina, e assim foram todos os dias. E lá eu ia conversando, tomando conhecimento das coisas. E foi lá que soube que o único rim dela havia sido retirado. O caroço que o médico havia retirado do lado direito dela era o rim, que é bem maior nas pessoas que só têm um. Na primeira internação foram 28 dias. 

ET - E você continuava na casa da Catarina?

Tereza - A casa dela era pequenina, três cômodos, aí a minha prima Abadia, irmã do Fernando se casou com o Naércio Moreira, aqui da Jaguarinha, e foram morar em São Bernardo do Campo. Catarina e o marido me levaram para a casa da Abadia. De repente a Regina teve alta, mas tinha de permanecer em São Paulo para fazer hemodiálise  e esperar a fila do transplante. E bota gente nessa fila... Aí eu fui trabalhar de empregada. Meu marido, Geraldo, que havia ficado em Sacramento, vendeu tudo e foi com a outra filha, Rejane, para São Paulo.  

ET - Como se arranjaram por lá?

Tereza – Não podíamos ficar todos na casa da Abadia, porém  como a gente sempre encontra pessoas boas na vida,  um conhecido deles, nos arrumou um barraco de tábua numa favela próxima. Eu fui trabalhando nas casas, o marido de servente de pedreiro, a Rejane foi trabalhar numa casa também e a Regina, três vezes por semana ia fazer hemodiálise. Saía de São Bernardo e ia pra vila Mariana, eram dois ônibus.  

ET - Quem decidiu que você daria um rim pra Regina?

Tereza - Eu mesma. O Geraldo e eu já havíamos conversado que um de nós daria o rim. E essa decisão aconteceu nas reuniões de grupo, onde os profissionais explicavam todo o procedimento, deixando sempre claro que a espera era muito longa. E que não deveríamos perder as esperanças. Foi quando levantei a mão e disse que eu ou me marido estávamos dispostos a ceder um rim para nossa filha. 

ET - Daí até o transplante foi rápido...

Tereza - Que nada! Foram meses e meses de exames em Geraldo e em mim. Só que antes disso, um dia a assistente social foi em casa e quando viu onde morávamos, ficou alarmada. Disse que Regina não poderia ficar naquele ambiente, pois poderia pegar infecção. E nem nós,que                                                     seríamos os doadores poderíamos ficar lá, pois não poderíamos adoecer.  E mais uma vez, Deus nos acudiu. Fomos morar numa casinha de três cômodos no quintal da casa da patroa da Rejane, que nos alugou a casinha. Até que um dia eles me chamaram dizendo que eu poderia ser a doadora. Só que eu teria de fazer uma cirurgia na bexiga. Fiz a cirurgia e quatro meses depois pudemos fazer o transplante. 

ET - Foi a data do segundo nascimento de Regina Lúcia, 28 de agosto de 1979, aos 18 anos... O que você sentiu nesse dia?

Tereza - Eu não daria apenas um rim, eu daria a minha vida pra salvar a da minha filha. Internamos  quatro dias antes. Lembro-me como se fosse hoje, fomos nós duas pra sala de cirurgia. Eu de um lado, ela do outro. Não nos víamos, mas o médico explicou: 'Vamos retirar seu rim, passar por aquela janelinha pra ser colocado em Regina. Na sala de recuperação não nos víamos, mas eu ouvi os médicos conversando com ela, depois vieram conversar comigo... 

Regina - (Emocionada, a filha Regina atalha a conversa...) O gesto de mamãe não há dinheiro que pague. Se vivo é por ela, eu não iria aguentar uma fila de espera para o  transplante, não.  Quando os médicos falaram em transplante e na fila de espera, eu vi que era o fim. Eu não tinha rim, passei a ficar na hemodiálise 24 horas, minhas veias estouravam... Nesses 36 anos, não existiriam nem ossos meus mais.  A fila de transplante de doador não-família já é um caos hoje, imagine naquela época. Com doador em família, fazia-se um transplante a cada quatro meses ou mais, hoje são quatro por dia.  

ET - Quanto tempo de espera?

Regina - Entre a cirurgia aqui e o transplante foram dois anos e quatro meses, considerando que faço aniversário em março e fiz o transplante em agosto. O doutor Carlos Stábile, de saudosa memória, é meu ídolo. Na minha vida estão três pessoas:  primeiro, Deus; segundo, minha mãe e, terceiro,  Dr.  Carlos, um grande nefrologista, mas havia também os doutores, Domingos D'Ávila, Ronaldo Bérgamo, Sérgio Draibe, José Omar Medina Pestana...

ET - Depois de quanto tempo você foi liberada para estudar, trabalhar, enfim,  fazer tudo o que quisesse?

Regina - Um ano foi de acompanhamento sistemático: de semana em semana, depois de 15 em 15 dias, três em três semanas, mês a mês e hoje faço acompanhamento de três em três meses, no Hospital de Clínicas, em Ribeirão Preto. Esse acompanhamento é  pelo resto da vida. Quando nos mudamos, consegui com Dr. Carlos Stábile, a transferência do prontuário para o HC de Ribeirão. Mas lá em São Paulo, voltei a estudar seis meses depois. Operei em agosto e no início do ano seguinte, voltei para a escola. Eu havia começado a estudar aos nove anos, porque morávamos na roça. Aos 16 anos, eu estava na sétima série e tive de parar, então logo depois do transplante voltei, mas tive de deixar a escola. Comecei a ter problemas, reações alérgicas, porque transplantado não pode com aglomerações,  a gente fica muito frágil  a infecções. Havia a máscara, mas eu não gostava de usar. Aí os médicos me aconselharam deixar a escola.  

ET - E hoje, como é sua vida?

Regina – Hoje, eu uso máscara, principalmente, quando vou a hospitais, locais de muita aglomeração. Mas, graças a Deus, nesses 36 anos só tive duas infecções no rim. Para conseguir emprego foi uma tristeza. Primeiro, eu não tinha estudos, segundo, as empresas hoje fazem entrevistas e quando respondia que era transplantada já me descartavam. Era uma discriminação terrível. Aí fui trabalhar de doméstica. Felizmente, registrada, mas com o passar do tempo tive um problema de Distrofia Simpática Reflexa no braço esquerdo e, depois de cinco anos fui afastada e consegui a aposentadoria. Mas isso depois de 27 anos depois do transplante. 

  ET - Você ficou viúva de Jorge, também transplantado e, há 15 anos,  contraiu segundas núpcias com José Carlos Antônio. Você teve filhos nesses casamentos?

Regina - Não. Não tenho filhos, aliás, nunca pude tê-los. E aí está a ironia da vida. Lembram que no início da entrevista mamãe disse que me levou ao médic, porque, aos 16 anos, eu ainda não menstruava. Sabem por quê? Eu não menstruava, porque não tenho útero, nunca tive. É uma malformação do organismo, uma deformidade  congênita. Nasci com apenas um rim e o útero não se formou.  Nunca precisaria ter operado. Mas como o médico ia saber disso aqui, naquele tempo? Não culpo ninguém, porque na cidade não tinha nem aparelhos para exames... Somos muito agradecidas, porque tivemos muitos anjos bons na nossa vida.

ET - E aí Tereza, que saga, heim! Você e sua filha, aliás toda a família, foram verdadeiros heróis. Como essa história termina? A boa filha à cidade natal torna?

Tereza - Graças a Deus após o transplante, as coisas foram melhorando. Mas tivemos que ficar em São Paulo durante nove anos. O Geraldo trabalhava na Bom Bril, eu trabalhava na fábrica de brinquedos Trol (extinta desde a morte do proprietário o ex-ministro Dilson Funaro, em 1989). Rejane também trabalhava e a Regina foi uns tempos doméstica, depois passou a trabalhar em casa, cuidando de todo mundo. Mas um dia retornamos...

ET - Quando?

Tereza - Ainda tem um pedacinho da história... (risos) Você não perguntou? Tivemos que deixar São Paulo, porque Fernanda, filhinha da Rejane, tinha um sério problema de bronquite  e os médicos nos aconselharam a sair de São Paulo, procurar um lugar  com um clima melhor. Foi quando optamos por Ribeirão Preto e lá moramos durante seis anos, depois Geraldo e eu decidimos voltar para Sacramento. Geraldo faleceu há seis anos.

ET - E você, Regina, quando retornou para Sacramento?

Regina - Nunca vou abandonar mamãe. Devo-lhe minha vida. Com a morte de papai, ela não quis voltar para Ribeirão, então, José Carlos e eu optamos por nos mudar  pra Sacramento. 

José Carlos - (Esposo de Regina, sempre calado ouvindo tudo é quem termina a história) São duas guerreiras, essas mulheres, dois espelhos da casa. Emociono-me sempre que ouço essa história. Para mim, são duas grandes mulheres...