Mariot Portella é uma belo-horizontina-sacramentana. O gentílico procede, porque Mariot viveu grandes momentos de sua infância e adolescência no Passa Perto. Pelo menos, duas vezes por ano, ela estava por aqui, na casa dos avós, Maria e Juca Ribeiro, pais da querida Hebe, sogros de José Portella, que deram à vida Mariot. Os avós e os pais sempre tiveram em alta conta aquela adolescente pós-hippie, mesmo quando chocou meio mundo ao optar por viver no Arraial d’Ajuda (BA), recebendo, sorrateiramente, como bom político que era, do avô Juca Sacramento, uma forcinha, vamos dizer, econômica. Simpaticamente, Mariot recebeu o ET, na casa da mãe Hebe, a casa de sua infância, para falar de sua vida aqui e em BH, da busca da identidade, da vida no paraíso do Arraial, aliás, foram três os paraísos, Sacramento, Arraial d’Ajuda e Ilha Bela... Falou dos casamentos, dos filhos, enfim, abriu o coração prá falar de sua doce vida... Veja a 1ª parte.
ET - Mariot, pra começar, quais as lembranças mais antigas que você tem de Sacramento, a sua cidade natal? Ou não foi aqui que você nasceu?
Mariot - Não, que pena!! Não nasci em Sacramento, só meu coração é daqui. Mas venho aqui desde que nasci, porque mamãe é sacramentana. Posso ter sido até gerada aqui. Quem sabe? Depois, vínhamos para cá todas as férias, desde criança, então, das lembranças que tenho de Sacramento, na minha mais tenra infância, é o carinho com que éramos recebidos pelos nossos avós, Maria e Juca, os tios, primos. Toda a família da mamãe morava aqui. Vínhamos por causa da família de mamãe. A família de papai morava em Belo Horizonte e estávamos sempre encontrando e nas férias, quando vínhamos, éramos recebidos com muito carinho.
ET - Nenhuma lembrança, digamos, física da cidade?
Mariot - Claro, muitas. Uma coisa que eu tinha verdadeira paixão era pelo jardim, aqui bem em frente a casa de meus avós. Que os mais velhos devem lembrar bem. Era lindo aquele jardim. Havia uma sorveteria, onde é hoje uma loja de produtos agrícolas. Ali havia uma sorveteria, do Tio Deda, depois virou o Bar Hollywood. Mas quando era sorveteria, logo que chegávamos aqui, íamos comprar picolé. Logo abaixo, em frente ao jardim, morava a nossa vizinha Dona Quituca. Era uma casa antiga, com curral, árvores frutíferas. Havia um pé de maracujá que eu me lembro até hoje. O primeiro maracujá que comi foi com a Lulu, sua filha. Ela apanhou o maracujá e me deu... Era um tempo bom, porque tínhamos uma liberdade aqui, que não tínhamos na capital, isso também foi uma coisa que marcou. Aqui nós nos soltávamos, éramos livres...
ET - O que não acontecia em BH... Capital, cidade grande, apartamento...
Mariot - Exatamente, em BH, éramos muito presos, por dois motivos: primeiro, morávamos em apartamento, tínhamos pouco espaço, porque éramos quatro irmãos; segundo, meus pais eram muito rígidos. Papai era funcionário público, íamos ao clube nos finais de semana, mas a nossa vida era muito simples e, digamos, muito regrada.
ET - Fale um pouco mais sobre essa 'prisão' de BH e a liberdade de Sacramento, na sua infância.
Mariot - Vir para Sacramento era um sonho sonhado por nós quatro irmãos. Passávamos o semestre inteiro esperando as férias pra vir para Sacramento. Aqui tínhamos espaço, não só da casa da vovó que sempre foi imensa, além desse quintal, mas a cidade toda. Aqui tínhamos os familiares e os amigos. No Natal, ganhávamos bicicletas, bonecas. E, naquele tempo a gente saia às ruas pra mostrar os presentes para os amigos. No dia seguinte ao Natal, a cidade ficava cheia de gente, crianças mostrando os presentes. Então, Sacramento era o melhor que tínhamos, foi o melhor da nossa infância, com certeza, de nós quatro. Belo Horizonte era uma coisa mais direcionada para a escola. Poderia ser até diferente naquela época, mas lá vivíamos dentro de um apartamento. E tem outra coisa, a família de papai, lá em BH, não era tão carinhosa como a da minha mãe. Tínhamos avós, tios primos, mas não era a mesma coisa. Acho que a família Coraza Ribeiro tem uma característica muito forte, que é a amorosidade. Vovô Juca era muito amoroso, minha avó Maria era amorosa. Reinava uma alegria muito grande, além do 'pode tudo'. Vovô nos levava pra fazenda, nos deixava sair a cavalo. Então, tudo o que era 'prisão' em BH era liberdade aqui.
ET - Fale um pouquinho de seus pais José Portella e Hebe Ribeiro. Sempre os tive como duas pessoas fantásticas... Que tipo de educação Mariot recebeu deles?
Mariot - Posso dizer que fui privilegiada, aliás, eu sou privilegiada, porque tenho uma mãe muito amorosa, muito cuidadora e tive um pai muito presente. Papai transpirava conduta adequada, ética, dignidade, bondade, solidariedade, cultura. Ele se preocupava com livros, sempre tivemos muitos livros em casa. Ouvíamos muitas histórias. Tínhamos radiola em casa, papai fez questão de que tivéssemos contato com a música, enfim com o mundo cultural. Sempre tivemos isso em casa. A maior herança que eu guardo dos meus pais é a conduta, os valores nobres, o humanismo. Papai era muito humano e passou isso para nós.
ET - Eu me lembro, naqueles tempos, ainda que a mudez se fazia ouvir, ele era um homem de esquerda, silente, conselheiro...
Mariot - Sim, papai era socialista cristão, pensava no outro o tempo todo. Pensava em nós o tempo todo. Pensava na minha mãe o tempo todo. Foi um homem muito bom e isso a gente tem no sangue, porque a referência do meu pais, desde o dia em que nasci até o dia em que ele se foi é essa. É o que chamamos de 'herança privilegiada'. E são coisas até muito engraçadas, que vou contar pra vocês entenderem a força que isso tem na nossa formação: Minha mãe pediu pra eu pegar um papelzinho numa gaveta dela, cheia de papeis. Eu não consegui, porque eu não consigo mexer numa gaveta, numa coisa que não é minha. O maior legado que um pai e uma mãe podem deixar aos filhos é a conduta própria deles. Não adianta querer ensinar com palavras. É a referência. Eu tenho pelos meus filhos o maior respeito, sempre tive por tudo. A individualidade e a liberdade de ser é o que mais prezo.
ET - Falando de referências, tenho lembranças muito gostosas de seu pai, não muitas, mas muito boas. Nos chamados 'anos de chumbo' a gente trocava algumas 'figurinhas', quando queríamos 'implantar a reforma do homem pelo homem, da fome pela vida', como dizíamos em 'Alienados', uma peça que escrevi, e ele sempre me freava: “Devagar que o santo é de barro e o fuzil de aço”.
Mariot - Um traço muito forte da individualidade do meu papai, que eu não chamo de personalidade, mas de individualidade, era a prudência. Apesar do tamanho do horizonte que ele tinha na cabeça, porque era uma pessoa muito lida, muito aberta, livre no pensar, no agir, e prudente. E também isso, ele passou para nós. Pelos riscos que a gente corre nessa sociedade em que vivemos, pela grandes diferenças, pelos embates... Mas vocês apresentaram a peça, não?
ET - Sim, apresentamos. Mandei o texto prá censura, em Brasília, voltou 'dilacerado'. Mas já tínhamos apresentado (risos). Hoje a peça pode ser passada às crianças do fundamental. Mas o que eu sentia era que seu pai, morando em BH, enxergava, via muito mais de perto o que estava acontecendo com os estudantes, aquela repressão toda. Ele era precavido, sim, e passava isso pra gente.
Mariot - Realmente era isso o que ele fazia.
ET - Saindo da infância e vivendo aquela fase explosiva da adolescência, como foram os seus anos na escola secundarista (ensino médio), atuante, líder de sala, politicamente engajada no meio estudantil, neta de um dos maiores políticos de Minas? Como você se define nesse período?
Mariot - Olha, eu fui uma aluna brilhante. Era, não sei se por inteligência ou por gostar de estudar ou por ter facilidade, uma boa aluna, ma não tive nenhuma atuação política. O que sempre gritou dentro de mim foi a espiritualidade, talvez herdado do lado materno. Eu observava o lado humano das pessoas, sempre fui uma aluna amiga. Eu era amiga da professora, amiga da irmã (freira), amiga das colegas de sala. Nunca fui líder de sala, talvez até fosse um pouco, porque pelas minhas facilidades, eu ajudava muito os colegas, ensinava para quem não tinha a mesma facilidade.
ET – Na peça, 'Alienados', mostro a atuação de três juventudes da época: a revolucionária, a rebelde e a hippie... Qual delas você representava?
Mariot - A rebeldia é um traço da minha vida. Eu sou uma pessoa rebelde, eu vivi nos anos rebeldes, peguei boa parte daquilo. Minha mãe gosta de dizer que eu era hippie. Se considerarmos que o que os hippies pregavam era a paz e o amor, sou hippie até hoje. Tenho a paz e o amor e outros valores espirituais humanos , mas como aluna eu não era política, não era engajada, líder de representar a sala, embora eu tivesse acesso a todos. Nunca tive turma na escola, sempre fui eclética. Eu estudava nunca escola particular, mais voltada para a elite. Vivendo nesse meio eu era meio ovelha negra, ou melhor eu era um peixe fora d´água. Aliás, eu era um peixe fora d´água na cidade, porque nunca me identifiquei com Belo Horizonte, apesar de ter nascido lá. E à medida que eu ia crescendo, não via a hora de sair de lá...
ET - Como foi a sua escolha para a universidade? Sabia o que queria desde cedo ou deu cabeçadas até se encontrar? Vamos falar da Mariot acadêmica. Você tem um curso superior? Tem uma profissão?...
Mariot - Profissão eu tenho, daqui a pouco eu conto. Agora, a universidade, eu gostaria de ter feito comunicação, mas não consegui entrar. Eu cursei Letras, não por vontade ou por meta, entrei por entrar numa faculdade. Como eu tinha o curso de inglês completo foi um curso que tinha a ver com o que eu já era, porque eu lecionava inglês. Minha primeira profissão foi ser professora de inglês, a partir dos 17 anos. O tempo que passei na faculdade, três anos, significou muito para mim, muito mais um enriquecimento humano, do que cultura de aprender com professores. Estudei na UFMG, na faculdade de Ciências Humanas e havia muita coisa interessante, teatro, cinema, grupos políticos, malucos, havia de tudo ali dentro e aquele universo me encantou. O que a universidade ajudou, que eu considero, na minha formação, foi a troca humana, a convivência. Não foi o que aprendi lá em nível didático.
ET - Na universidade, você esteve mais próxima de Chico Buarque, “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...” Ou de Caetano Veloso, “Eu tomo uma coca cola; eu nunca mais fui à escola?”
Mariot - Um pouco dos dois, porque eu gostava da universidade. Eu não tinha essa coisa de abandonar a universidade. Eu não entrei na universidade pra abandonar. Entrei para ir até o fim, só que no meio do caminho aconteceram coisas que me levaram a não estudar mais. Havia alguma coisa dentro de mim, que queria outras coisas, não aquilo. Comecei a universidade em 1977 e em 1980, pulei fora...
ET – Pode contar os motivos?
Mariot – Sim, claro. Quando conheci o Arraial d' Ajuda, em janeiro de 1980, senti que aquele era o meu lugar. Na época era um arraial mesmo, nem tinha luz. Era um distrito de Porto Seguro, na Bahia. A gente atravessava o rio, subia a falésia (forma geográfica no litoral, caracterizada por um abrupto encontro da terra com o mar) – grifo nosso) e o arraialzinho estava lá em cima, com poucas pessoas e uma liberdade inimaginável. Minha busca maior era essa.
ET - E como foi passar essa notícia ao precavido Dr. José Portella e à religiosa Da. Hebe?
Mariot - Foi um choque, e bota choque nisso!! (risos) Quando eu voltei para casa e contei que iria morar lá, foi um choque muito grande para todos. Eu me lembro que reuni a família toda na sala e contei que ia mudar para o Arraial, foi um choque. Nem meus irmãos me apoiaram. Não era nada disso que eles queriam para mim, apesar de eu ser diferente, aquele peixe fora d'água como eu disse, em relação a BH, eu o era também dentro da família, na adolescência. Meus valores eram diferentes, meu olhar para vida era diferente do restante da família. E eu não pude ir imediatamente como gostaria.
ET – O que a atraiu no Arraial d'Ajuda a ponto de deixar a família e a faculdade no último ano e se mandar?
Mariot - No Arraial d´Ajuda o que me encantou foi a natureza, forte e exuberante, a liberdade de ser. Lá eu não era filha de ninguém, neta de ninguém, irmã de ninguém, eu era a Mariot. Eu precisava desse contato com a minha identidade, que eu não tinha. A minha identidade era podada, barrada, negada, porque eu trouxe muitas coisas novas para a família, numa época em que tudo era muito proibido. Eu tinha idéias diferentes e precisava saber quem eu era, e o Arraial d´ Ajuda para mim era essa grande possibilidade.
ET - Como você conheceu o Arraial?
Mariot - Eu já ouvia falar muito do lugar. Nas férias de janeiro, um amigo me ligou falando que estava indo para o Arraial. Eu já trabalhava, tinha meu dinheiro. . Não pensei duas vezes e fui. Passei 20 dias lá. No segundo dia, eu nunca vou me esquecer, quando me sentei atrás da igreja, vi o coqueiral, aquele mar maravilhoso com aquela praia linda eu pensei: É aqui! Não tive mais dúvidas. Tranquei a universidade, escondido, porque meu pai jamais deixaria e aumentei as minhas aulas de inglês no CCAA, pra conseguir um dinheirinho e mudei para o Arraial, em julho. Vivi uma loucura de trabalho pra juntar o dinheiro, porque era tão claro para mim, que eu considero um 'chamado'. Acho que foi a primeira vez que ouvi o chamado do meu eu e não tive dúvidas, tracei o meu caminho e fui, apesar de toda a família ser contra. Toda, vírgula, porque, em junho, eu recebi de uma pessoa, que não me lembro quem, Cr$ 30 cruzeiros, que meu avô Juca mandou me entregar, escondido. O único apoio que tive da família para fazer essa mudança, foi do Juca Sacramento, que não só me mandou um dinheirinho, como me escrevia cartas lá pro Arraial. Nós correspondíamos um com o outro. Ele escrevia e eu respondia. Ele falava nas cartas que tinha inveja de mim, por morar numa casinha de pescador, na beira da praia. Ele tinha na cabeça dele que era uma coisa linda e era uma coisa linda mesmo. Há até uma poesia linda que ele escreveu numa das cartas: “O mar também tem amantes / ele também tem mulher. / Ele é casado com a areia / é dá-lhe beijos quando quer”.
ET - Durante todo esse tempo, você continuava tendo Sacramento como uma referência?... A terra da mãe Hebe, que era filha do mais importante político da cidade no segundo quarto do século XX. Ou Sacramento, como diz Drummond, era apenas um 'retrato na parede'?
Mariot - Nunca foi apenas um retrato na parede, continuou sendo uma referência. Da mesma forma que as melhores lembranças da minha infância são de Sacramento, também são as da adolescência. Tínhamos aqui em Sacramento a Praça de Esportes, o cinema, o clube, o Hollywood, o rancho, as fazendas, a Terceira Ponte, o Castelhano, os amigos, a liberdade, o footing no jardim, que era uma delícia, os rapazes andando de um lado e as moças de outro, os namorados, que aqui em Sacramento a gente tinha com muito mais gosto. Porque em Belo Horizonte a gente não tinha muito contato com as pessoas. Em Sacramento, a nossa vivência era íntima, porque todos eram parentes, conhecidos. Ah, as serenatas, roubar galinha pra fazer galinhada. Roubei muita galinha com o Marcão e a Cristina, meus primos, o Vit, o Tadeu. A gente pulava o muro do vizinho. Havia o Tião da Curandeira, a gente ia pra lá comer. Pegávamos rãs no Borá e a tia Leda fazia fritas, uma delícia. Era muito divertido, era maravilhoso. Sacramento era um palco existencial maravilhoso para todos. Só deixei de vir a Sacramento quando fui para o Arraial com 21 anos, mas as referências nunca foram esquecidas.
ET - Falando, então, em referências 'nunca esquecidas', de serenatas, dos amigos, eu me lembro aqui do Robertinho Gribel, d´Os Corujas, cantando 'Madrugada': “Eu na cidade em plena rua, o céu negro, uma pequena lua, mil estrelas a brilhar...” Ele fez essa canção para você, não foi?
Mariot - Fez para mim, ele me confidenciou isso. Todas as serenatas ele cantava essa canção. Veja bem, a gente era tão jovem... Nessa época do Robertinho, eu tinha 12 anos e a gente já se encantava, tinha os namoradinhos. Tivemos um affair, mas éramos muito jovens, talvez tenha sido uma identificação, uma coisa de ele gostar da minha energia e eu da dele, mas não era namoro, éramos duas crianças. São lembranças deliciosas. Imagine o que é acordar com o namorado cantando na janela... E os flertes? O Bonde no cinema? Ai que delícia era aquele tempo... Só não podia o Timóteo acender a luz... (risos). Era muito bom... Como eu gostaria que Sacramento tivesse a metade do que tínhamos naquele tempo...
ET - Enfim, quem foi naquela época o 'Pequeno príncipe' – lembra de Antoine Saint Exupéry, leitura obrigatória de todos os adolescentes – que te cativou a ponto de te levar pra um tal de Arraial d´Ajuda, na Bahia?
Mariot - Não havia príncipe encantado. Eu fui por um chamado interno. Fui porque minha luz me levou para lá. Deixei meu príncipe aqui... os namorados de Sacramento...
ET – Então, voltemos a Sacramento. Vamos lembrar dos primeiros flertes, dos namorados conquistados no footing do jardim...
Mariot - Eu me lembro com muito carinho dos namoricos que tive aqui 'no' Sacramento, porque era tudo muito puro e muito verdadeiro. O coração batia, disparava, era uma coisa gostosa. Aqui namorei o Franz Scalon, ele era de Uberaba, o Marcos Bernardes, o Carsinho, filho do Riceiro Lenza. Carsinho foi uma paixão. Tem também o Marcelo, sobrinho do Quinca Borges, pai da Cristina. E namorei o Viti, só... (risos) que na verdade foi o meu grande amigo. Ele foi namorado, irmão, amigo, companheiro, tínhamos uma identificação muito grande. Foi uma grande perda na minha vida a morte dele, mas o Arraial d´Ajuda me arrebatou de tal maneira, que tudo isso ficou para trás. Fiquei absolutamente encantada pelo Arraial. Mas os namoros restringiam-se ao jardim. O footing começava às 7h00, depois a sessão no cinema do Tio Amur, uma passadinha no Sacramento Clube e, às 22h00, tínhamos que voltar pra casa. Mamãe ficava em pezinho no alpendre olhando no relógio, mas eu vinha toda feliz, a gente tinha conduta, princípios que a gente não perde por nada. E os nossos foram passados com muita rigidez.
ET - Que são muito mais difíceis, hoje, passar aos nossos filhos...
Mariot - Os tempos são outros. Essa pureza que eu identifico na nossa adolescência, em Sacramento, não existe mais. Não pelos nossos filhos, mas pelo mundo em que vivemos e também pela informação instantânea que temos. Naquele tempo a gente vivia numa redoma, num mundinho restrito, a gente não sabia o que rolava no Rio de Janeiro, São Paulo... dirá do mundo! Vejo que o mundo hoje perdeu a pureza, as pessoas perderam a pureza.
ET - O que você fazia no Arraial d'Ajuda? Você não foi prá lá ensinar inglês prá 20 pessoas... Então, conta, o que fazia lá e quanto tempo ficou na Bahia?
Mariot - Fui para o Arraial aos 21 anos, em julho, só que na Semana Santa anterior a esse julho, fui ao Arraial d´Ajuda para me situar. Ver o que iria fazer, onde morar. E, como era professora de inglês fui ao Colégio Municipal de Porto Seguro, sede do distrito, prá conhecer. E qual não foi a minha surpresa, quando constatei que nunca, nunca tinha havido professor de inglês, lá. Então, eu, imediatamente, me prontifiquei a ser a primeira professora de inglês do Colégio. E passei a dar aulas do 1º ano primário até o 3º ano do Colegial. Lecionava para todas as turmas do colégio. Eu ia para o colégio, diariamente. Pra chegar, a gente atravessava o rio de balsa e andava mais cinco quilômetros. Mais tarde, saí do Colégio Municipal e criei uma Escolinha de Inglês para crianças em Porto Seguro. Mas passei também a lecionar num colégio particular chamado 'Pituchinha'. E, também dava aulas particulares para médicos, esposa do prefeito, vereadores... Eu tinha várias atividades como professora de inglês. Trabalhava todos os dias. Ia para Porto Seguro após o almoço e só voltava para o Arraial à tardezinha. Mas pela manhã era limpar casa, lavar a minha roupa, fazer a comida, mas ainda dava pra ir á praia. E um dia me apaixonei...
ET - Espera aí, essa é outra pergunta. Você se apaixonou por ...
Mariot - Ari Sobral, um músico lá do Arraial d´Ajuda. Fomos morar juntos e fiquei grávida. Aí meu pai, que era uma figuraça, me concedeu uma pousada. Ele ficou preocupado com o meu salário de professora de inglês e com um filho que eu estava gerando. Ele teve a preocupação de garantir a criação dessa criança. Papai, com todas as dificuldades de um funcionário público, tinha um traquejo muito grande com dinheiro. Ele me mandou o dinheiro, o Ari e eu construímos a pousada e o João nasceu. João e a Pousada 'Jardim Tropical' nasceram juntos. A pousada ficava no caminho da praia... Quando João completou um ano, engravidei novamente, da Júlia. Ela nasceu e voltei à luta, dava aulas de inglês e administrava a pousada. Comecei a minha carreira hoteleira, lá no Arraial, mas por causa de meu pai, que, com a sua inteligência, teve a idéia da pousada. Mas sempre fui uma pessoa muito humana, de ouvir os outros, trocar idéias, me aconselhar, receber bem, a pousada era muito concorrida, era muito bom... só que depois de cinco anos...
ET - ... você recitou Vinícius para o seu músico: “...Eu possa me dizer do amor que tive, que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.
Mariot – Não foi bem o Soneto da Fidelidade, mas o 'soneto da incompatibilidade de horários' (risos). Sobral era músico, ele vivia a noite e eu vivia o dia e não deu mais certo. Então, resolvi que ia mudar de lugar. Quando Júlio completou cinco anos e o João, seis, meu casamento acabou. Sempre fui uma buscadora de coisa nova, tenho alma cigana, gosto de desafios. Só que pra quem morava em Ajuda, vir para outro lugar é muito difícil, por lá a forma de viver é muito peculiar. Mas eu fui buscar onde tinha amigos pra ver onde me caberia. Peguei meus dois filhos e vim para Ilha Bela, litoral de São Paulo. Tinha uma grande amiga em Ilha Bela e fui recebida de braços abertos. Ilha Bela me abraçou e me deu todo respaldo de que precisava.
ET – Você tinha quantos anos?
Mariot - Eu estava com 33 anos. E, naquele ano de 1992, quando cheguei, estavam inaugurando a Wizard, e já entrei como professora de inglês. Tem uma coisa muito interessante em Ilha Bela, a padroeira de lá é Nossa Senhora D´Ajuda e quando fui conhecer a matriz e via nossa senhora pintada no teto, não tive dúvidas de que era lá que eu deveria ficar. Assim, fiquei 11 anos no Arraial d´Ajuda e quase 20 em Ilha Bela. Lá eu me apaixonei pelo Sérgio, que possui um residencial, que é um hotel com casa de aluguel e aí fui administrar, ou seja, continuei minha carreira hoteleira. Eu era professora da Wizard e gerente administrativa do residencial, até 2008. Mas permaneci na Ilhabela até 2010, onde nasceram meus outros dois filhos, André e Luana.
ET - Nessas idas e vindas de uma ilha para outra, quem você deixou para trás e que te dá muita saudade?
Mariot - Eu faço grandes amizades e amizades profundas. Eu até me emociono de falar nisso, mas tenho muitas saudades. Saudade é um sentimento que me habita o tempo todo. Saudades de algumas pessoas de Ajuda e várias de Ilhabela, onde deixei grandes amigos. Tenho saudades das trocas, da amizade, do amor, da solidariedade, de tudo o que cultivamos juntos, eu e meus amigos. Amigos são referências fortes na vida da gente.
ET- Vamos falar dos filhos. Aliás, podemos dizer que você foi a mais parideira de todos os Portella...
Mariot - Com certeza!! (risos). Ser mãe é a minha melhor parte, a maternidade me realiza, dedico-me aos meus filhos como a uma obra de arte. Sou uma artista como mãe e sou absolutamente realizada. Tive a graça e a bênção de ter quatro filhos de uma qualidade impressionante. João, mora em Piracicaba (SP) tem 27 anos, é engenheiro florestal, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a ESALQ, e foi um aluno brilhante. Como pessoa é excepcional, filho queridíssimo, amigo forte, uma criatura iluminada. E hoje trabalha num projeto da USP com o Incra. O trabalho dele é de agroecologia, nos assentamentos de sem-terra. Júlia tem 26 anos, formada em Multimeios, pela PUC/SP, ela trabalha com cenografia e num projeto sobre a história da moda no Brasil. Linda, amiga, amorosa, que muito me honra. João e Júlia são porto- segurenses, André e Luana são ilha-belenses ou caiçaras. André tem 13 anos, estuda no Colégio Rousseau e Luana tem 9 anos, estuda no Colégio XX de Outubro. Crianças lindas, inteligentes, amorosas, alegres. Aliás, lá em Ilhabela sou famosa pelos meus filhos, as pessoas elogiavam pelo encanto que eles são. E eu como mãe potencializo e cultivo os elogios. Elogios, solidariedade e muito carinho...
ET - E chega um dia em que a 'boa filha à casa torna'. Tem alguma coisa a ver com a história bíblica do filho pródigo: “E o pai o viu já lá de longe, com amor correu ao seu encontro e com grande piedade o beijou...”?
Mariot – Sim, tem, é verdade. Com certeza. Eu jamais pensei em vir morar em Sacramento, mas quando me separei em Ilha Bela, me veio novamente aquela asinha querendo bater e mudar. Meu filho André sugeriu: “Mãe, vamos morar em Sacramento com a vovó”. E, a partir desse dia , comecei a refletir sobre essa possibilidade e as coisas começaram a fazer sentido para mim. E, quando falei com mamãe, que gostaria de vir pra cá, ela foi a minha maior incentivadora. Sou, sim, uma filha que a casa torna, mesmo porque quando saí de casa, saí brigada. Fui para o Arraial d´Ajuda, a despeito de toda família. Então, eu voltei e fui recebida pela minha mãe, como um anjo da guarda, daqueles que abrem os braços e acolhem e ela, me proporcionou, desde o primeiro momento e vem me proporcionando até hoje, todo alimento que minh´alma necessitava, todo conforto que gostaria de proporcionar aos meus filhos, o sentido de família que eu trouxe meus filhos para conhecer.
ET – Olha, que as referências foram tão fortes que ficaram no DNA dos netos... Voltam aos avós.
Mariot - Cá pra nós, uma família mineira é diferente de uma família paulista. Minha mãe, meus tios, primos me preencheram e me preenchem. Hoje, posso dizer que estou em Sacramento de corpo e alma. E a força que me traz são as noites de sono tranqüilo, o sorriso carinhoso que tenho todas as manhãs.. são muitas coisas, todos os sinais que tenho recebido, indicam que vir para Sacramento foi a coisa mais acertada que fiz. Foi outra bênção...
ET - Te perguntei naquele jantar lá na Ivone, sobre sua agenda aquela semana prá fazer a entrevista, e você deu uma gostosa risada, afirmando que estava 'livríssima'. Até quando? Isto é, quais são os seus planos em Sacramento?
Mariot – Eu disse que não me formei em faculdade, mas que tinha uma profissão. Então, além do Inglês, em 2007 eu me formei em Terapia Floral de Minas, e me encontrei nos florais. São os florais que ministro e que trabalho. A terapia floral é uma terapia para a alma, um trabalho muito lindo em nível humano, que tem tudo a ver comigo. O Floral dissolve bloqueios e potencializa virtudes, ajudando a pessoa a ser e a estar melhor. Eu trouxe os florais para Sacramento, muito devagar, muito tranquilamente, porque acho que as coisas têm que ir ao poucos, até porque é uma coisa um pouco desconhecida. Mas eu pretendo ampliar o alcance dos florais na cidade.
ET – Obrigado pela entrevista. Que todas as flores e a natureza exuberante desta terra do Santíssimo Sacramento rendam-se a sua presença cativante!
Mariot - Sou eu que agradeço. E que chovam as flores!!