Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

INTERFERÊNCIA NA IMPRENSA, A LIÇÃO DO INOLVIDÁVEL RUI

Edição nº 1463 - 01 Maio 2015

Há determinados momentos na história em que devemos recorrer aos escritos clássicos de grandes pensadores e intelectuais, buscando na gênese das atitudes e dos atos, a valoração correta da dimensão e da intenção daqueles que, na atualidade, prolatam algumas ideias, e isso para que, não se deixando romper o fio tênue dos acontecimentos na esteira do tempo, possamos sopesar os institutos referentes à matéria que se quer interpretar, retomando, desta forma, a nau do tempo e colocando-a novamente em mares navegáveis.

Dentre tantos que atuaram no palco da erudição, a luz da estrela de um jurista baiano parece ofuscar qualquer outra luz que se possa, ou que se queira invocar em seu lugar. 

Nada menos do que admirável a envergadura de uma mente extremamente arguta, de um raciocínio que se movia na velocidade do voo de uma águia, cujo destino final de seus potentes arpéus era o inexorável pouso, seguro, na montanha firme da eloquência e da persuasão. 

Fez bem a editora Iracema, por J.P.C., pontuar que nosso ínclito patrício, pela sua privilegiada inteligência, cultura vasta e profunda, projetou-se não apenas em nosso continente, seu talento e seu renome atingiram a velha e douta Europa. E provou ele fazer jus ao mesmo quando, representando o Brasil na Conferência de Haia, assombrou seus pares com seu talento extraordinário defendendo as nações fracas e indefesas com inabalável firmeza.

Rui Barbosa não foi um gigante somente em direito. Foi exímio advogado, jornalista, escritor, político e orador, deixando aflorar parte de sua extensa cultura em diversas obras que enriquecem o acervo da nação.

O célebre baiano, do alto de sua cátedra, dizia “que a imprensa é a vista da nação. Por ela que a nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que lhe ameaça. Todo o bem que se haja dito, e se disser da imprensa, ainda será pouco se a considerarmos livre, isenta e moralizada. Moralizada, não transige com os abusos. Isenta, não cede às seduções. Livre, não teme os potentados”.

O filósofo e político Francês Pierre Paul Royer Collard, observou que a imprensa, mais que uma necessidade política, é uma necessidade social. Emmanuel Joseph Sieyés, compatriota e contemporâneo de Collard, asseverava que não há liberdade sem a liberdade de imprensa. De todos, no entanto, O inglês William Pitt foi aquele que pontuou o tema com maior precisão cirúrgica ao dizer que “à imprensa deve tocar o encargo de corrigir a si própria”.  

O Grande Rui nos alertava que nada era mais útil às nações do que uma imprensa na lisura de sua missão; por outro lado, nada mais nefasto do que ela mesma na transposição do seu papel. Se o fiel der em ladrão, dizia ele, não haverá, neste mundo, ladrão tão perigoso, porque bem poucos são os que dos seus guardas se guardam. E continuava: “Por isso mesmo não há, para qualquer sociedade, maior desgraça que a de uma imprensa deteriorada, servilizada, ou mercantilizada; tampouco haverá bem mais arriscado a depravar-se em mal do que esse bem dos bens, numa nação como a nossa, cujo governo, de relações ordinariamente extintas com seus deveres, busca apagar as luzes e correr os reposteiros sobre as cenas da sua habitual imoralidade”.

Outra passagem merece destaque, quando o percuciente e brilhante advogado, analisando a obra de Wuttke, pondera: “Vai por cerca de cinquenta anos que um historiador prussiano, dos mais notáveis de sua terra, o professor Wuttke, lente na universidade de Leipzig, escrevia o seu célebre livro sobre a verba dos reptis (Reptilienfund), livro clássico no assunto. Por ele se veio a saber que, com o nome de “Repartição da Imprensa”, Bismarck estabeleceu às margens do Espreia, a mais vasta fábrica da opinião publica até então conhecida, e lhe derramara as filiais pelo mundo inteiro. É um depoimento estupendo acerca desse terrível mecanismo, graças ao qual, há mais de meio século, já o gabinete de Berlim se considerava senhor de toda a imprensa. Foi por esse meio que se aparelhou a vitória alemã contra a Áustria, em 1886, se vingou o triunfo alemão contra a França, em 1871, e estava organizada para 1914, a inundação do mundo pela Alemanha”.

Subvenção ou suborno? Indagava Rui. E profetizava: “Nessa linguagem se admite a hipótese de eventualidades, em que o Governo possa entrar, de bolsa aberta, pelas redações dos jornais, como a libertinagem pelas casas de tolerância. Quando, evidentemente, em todo e qualquer caso, esses negócios abjetos são atos de lenocínio, dos quais ambas as partes saem contaminadas. Quando o que fazem os administradores públicos, tomando escritores de aluguel, para darem por suas as convicções, que lhes dita o suborno custeado pelos subornadores com dinheiro alheio, é mascararem de honradez o proxenetismo, e de verdade a mentira. Quando, em suma, com a torpeza desses costumes, os agentes do poder iludem a nação, de que são mandatários, dilapidam o patrimônio coletivo de que são guardas, e lhe infestam a política de uma casta de parasitas tão vis quanto virulentos e insaciáveis”. 

E exortava: “O homem público é o homem da confiança dos seus concidadãos, o de quem eles esperam a ciência e o conselho, a honestidade e a lisura, o desinteresse e a lealdade; é o vigia da lei, o amigo da justiça, o sacerdote do civismo. Só assim estará na condição de inspirar fé aos seus conterrâneos; e, se na fé consiste a crença, a segurança e a salvação, ninguém põe a sua fé senão onde tenha a convicção de se achar a verdade. Logo, se o homem público há de viver da fé que inspirar aos seus concidadãos, o primeiro, o maior, o mais inviolável dos deveres do homem público é o dever da verdade. Verdade nos conselhos, verdade nos debates, verdade nos atos; verdade no governo, verdade na tribuna, na imprensa e em tudo verdade, verdade e mais verdade. A política brasileira inverteu esse princípio elementar. Em lugar de verdade, verdade e mais verdade, mentira, mentira e mais mentira: só mentira, mentira e mentira”.

Adaptando o pensamento à verve ácida de Lincoln Steffens, autor de “A vergonha das Cidades” e “A luta pela Democracia”, ressalvadas as escassas exceções, o governo deixou de ser do povo, pelo povo, para o povo, e passou a ser governo do povo, pelos velhacos, para os bandidos.

Não fosse pela publicidade dos atos, apontava o mestre Rui, uma das mais nobres figuras da política americana, George William Curtis, na convenção republicana do Estado de Nova Iorque (Estado onde está localizada a cidade de Nova York), em 1876, não desfraldaria a bandeira da verdade como a da salvação pública: “A linguagem clara é a melhor”, dizia ele, trazendo à luz as corrupções descobertas da administração pública em todos os sentidos, demonstrando a tendência incessante dos funcionários e agentes administrativos de se prostituírem de contínuo, e a todo custo, aos seus interesses pessoais.

Sobre o perigo de aniquilação da liberdade e do bem coletivo decorrentes de uma imprensa sem interferências governamentais, ressaltando o pensamento do publicista alemão Wuttke na defesa dos direitos da imprensa e da importância dos jornalistas, assim discorreu o intelectual brasileiro: “Da mesma convicção estou eu possuído, quando insisto em reagir contra a lepra, com que a política dos nossos dias está grassando o jornalismo brasileiro. Tenho certeza, adquirida na experiência do mundo inteiro, que este mal de mofo e bafio, criado à sombra e no charco, não se cura senão a poder de ar livre e luz solar. É obra da mentira; e a mentira não se medica homeopaticamente, com os seus semelhantes. O remédio da mentira está na verdade. A República, entre nós, se consagrou ao culto da mentira. Só nos salvaremos, opondo a essa idolatria a religião da verdade”.

Como se nota, a história demonstra que a aproximação e a interferência dos governos na imprensa sempre a infectaram de promiscuidades e de proliferação de inverdades na condução da defesa de direitos partidários e na manipulação da opinião pública.

Qualquer interferência, por menor que seja, decorrente da esfera política – na seara da publicidade dos atos e das opiniões jornalísticas – é de uma perniciosidade letal para qualquer democracia.

Eventuais erros, abusos e responsabilidades deverão ser discutidos, apurados e disseminados no seio do Poder Judiciário, órgão competente para resolver conflitos em um Estado Democrático de Direito.  

 

Ricardo Alexandre de Moura Costa (Da Matta)

- Advogado -