A Campanha da Fraternidade começou junto com o Golpe Militar de 64, que aconteceu, de verdade, na madrugada de 1º de abril, o 'Dia da Mentira'. Lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no início da quaresma daquele ano, teve como primeiro tema, 'Igreja em renovação' e o lema, 'Lembre-se, você também é Igreja'. Na secretaria geral, Dom Hélder Câmara, o 'bispo vermelho', como era conhecido no círculo militar.
Passados 54 anos, a CF continua sendo um momento de reflexão do povo de Deus, no cumprimento de seus três objetivos permanentes, resumidos em três verbos: 'despertar' o espírito comunitário cristão; 'educar' para a vida em fraternidade e 'renovar' a consciência da responsabilidade de todos na busca de uma sociedade justa e solidária.
Nessas mais de cinco décadas, os temas abordados foram divididos em três fases: na primeira, de 64 a72, a CF abordou temas que buscavam a renovação interna da igreja e dos cristãos; a segunda, que vai de 73 a 84, às vésperas do Ano da Virada, já marcando o fim da ditadura, os temas foram mais candentes, baseados em três documentos dos mais importantes na história da Igreja atual, Vaticano II, Medellin e Puebla, quando os bispos discutiram a realidade social do povo, denunciando o pecado social e promovendo a justiça; e a 3ª fase, que começou em 85 até os dias de hoje, com temas centrados nas situações existências do povo brasileiro, como o tema deste ano, 'Fraternidade e superação da violência', e o lema, 'Vós sois todos irmãos' (Mt 23,8).
A 'Violência' já foi um dos mais repetidos temas da CF ao longo desses 54 anos. De modo específico, em 1983, o tema foi 'Fraternidade e violência', e o lema, 'Fraternidade sim, violência não'. Outras vezes, os temas foram uma sequência de denúncias: a violência do homem contra o planeta, os biomas, a água; a violência contra os sem tetos; contra os povos indígenas; contra os negros... E agora, contra as múltiplas formas de violência. Tão estarrecedoras que, comparadas com guerras e conflitos no mundo atual, o Brasil mata mais.
As revelações denunciadas pela CNBB no texto base da CF chocam de maneira impressionante a sociedade como um todo. Veja algumas estatísticas do 'terrorismo' que ocorre em nosso país:
- Apesar de possuir menos de 3% da população mundial, o Brasil responde por quase 13% dos assassinatos do planeta.
- Em 2014, o país bateu o recorde dessa vergonha. Foram 59.627 mortes, segundo o Ipea (Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada).
- Os número apontados pelo Mapa da Violência 2016 mostram que, no Brasil, cinco pessoas são mortas a cada hora por arma de fogo; por dia, são 120 pessoas.
- Homicídios, sequestros, estupros são formas de violência que constituem a principal e a mais imediata preocupação dos cidadãos.
- Em 2017, um estudo intitulado, 'Vidas em luta: criminalização e violência contra defensores', revela que, pelo menos, 66 defensores dos direitos humanos foram assassinados no país.
- Jovens e negros, com idade entre 15 a 24 anos, são as maiores vítimas: em 2011 houve mais de 52 mil mortos por homicídio no Brasil. Do total, 52% eram jovens e, desses, 71% eram negros, majoritariamente do sexo masculino, 93%.
- O número de homicídios por arma de fogo cresceu 593% entre 1980 e 2014.
- Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, em 2015, o país registrou 45.460 casos de estupro. Mas o levantamento estima que, na verdade houve entre 130 mil a 454 mil estupros no Brasil nesse ano.
- A violência contra crianças e adolescentes não é diferente. Em 2014, o Disque Direitos Humanos registrou mais de 91 mil denúncias de violação de direitos de crianças e adolescentes.
- Segundo a ONU, a pobreza é causa da morte de pelo menos 17 mil crianças e jovens todos os dias.
O documento é alarmante, estarrecedor... Os relatos acima não abordaram a questão da exploração sexual e tráfico humano, a violência contra os trabalhadores rurais, contra os povos tradicionais, a violência política da corrupção, a violência judiciária, a violência do narcotráfico, a violência policial, a violência no trânsito, quando 41 mil brasileiros perderam a vida no ano de 2012...
A CNBB foi fundo no tema, mostrando que a Igreja tem muito o que pregar nessa Quaresma. E a sociedade como um todo tem um papel fundamental nessa luta, que vai muito além da repressão e condenação. “Não se pode amenizar esse sofrimento sem ações claras e determinadas no campo da educação, da saúde, do esporte, da assistência social e da cultura”, prega o texto base. Urgem políticas públicas nesse sentido. A repressão pura e simples nos presídios não socializa ninguém.
O chamado final do texto faz um alerta a todos nós. “Como cristãos, somos chamados a construir o reino da verdade e da graça, da justiça, do amor e da paz, pois somos todos irmãos”. (WJS)