Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Limites da liberdade de expressão

Edição nº 1456 - 13 Março 2015

Os atentados terroristas no início deste ano em Paris e em Copenhague a propósito de caricaturas tidas como insultantes a Maomé, atentados perpetrados por extremistas islâmicos, trouxeram à baila a liberdade de expressão. Na França há uma verdadeira obsessão, quase histeria, na afirmação ilimitda da liberdade de expressão, legado sagrado, como dizem, do iluminismo e da natureza laica do Estado. É algo absoluto.

Diferentemente e com razão afirmou o bispo profético Dom Pedro Casaldáliga: “Nada há de absoluto no mundo a não ser Deus e a fome; tudo o mais é relativo e limitado”. Extendendo o teorema de Gödel para além da matemática, pode-se afirmar a insuperável incompletude e limitação de tudo que existe. Por que deverá ser diferente com a liberdade de expressão? Ela não escapa dos limites que devem ser reconhecidos, caso contrário damos livre curso ao vale tudo e  às “vendettas”. A ideia francesa da liberdade de expressão supõe uma ilimitada tolerância: há que se tolerar tudo. Contrariamente afirmamos: toda tolerância possui sempre um limite ético que impede o “vale tudo” e o desrespeito  aos outros que corrói as relações pessoais e sociais.    

Todo exercício da liberdade que implica ofender o outro, ameaçar a vida das pessoas e até de todo um  ecossistema  e violar o que é tido por sagrado, não deve ter lugar numa sociedade que se quer minimamente humana. Ora, há franceses (nem todos) que querem a liberdade de expressão, imune a qualquer restrição. O resultado dessa arrogância foi tristemente constatado: se a liberdade é total então deve valer para todos e em todas as circunstâncias. É o que pensaram, certamente, (não eu) aqueles terroristas que assassinaram os cartunistas do Charlie Hebdo e outras pessoas em Copenhague. Em nome dessa mesma liberdade ilimitada. Pouco vale alegar que há o recurso à lei. Mas um mal uma vez feito, nem sempre é reparável e deixa marcas indeléveis.

A liberdade sem limite é absurda e não há como defendê-la filosoficamente. Para contrabalançar os exageros da liberdade costuma-se  ouvir a frase, tida quase como um princípio: “A minha liberdade acaba onde começa a tua”.         

Nunca vi alguém questionar esta afirmação. Mas precisamos fazê-lo. Pensando nos pressupostos subjacentes devemos, submetê-la a uma crítica rigorosa. Trata-se da típica liberdade do  liberalismo como filosofia política.

Expliquemos melhor: com a derrocada do socialismo realmente existente se perderam algumas virtudes que ele, bem ou mal, havia suscitado, como, certa feita, o reconheceu o Papa João Paulo II:  o sentido do internacionalismo, a importância da solidariedade e a prevalência do social sobre o individual.

Com a ascensão ao poder de Thatcher e de Reagan voltaram furiosamente os ideais liberais e a cultura capitalista sem o contrapont socialista: a exaltação do indivíduo, a supremacia da propriedade privada, a democracia delegatícia, por isso reduzida e a liberdade dos mercados. As consequências são visíveis: atualmente,  há muito menos solidariedade internacional e preocupação com as mudanças em prol dos pobres do mundo do que antes. Vigora uma perversa concorrência eliminando os fracos.

É neste pano de fundo  que deve ser entendida a frase “a minha liberdade acaba onde começa a tua”. Trata-se de uma compreensão individualista, do eu sozinho, separado da sociedade. É a vontade de ver-se livre  do outro e não de exercer a liberdade com o outro.

Para que a tua liberdade comece, a minha tem que acabar. Ou para que tu comeces a ser livre, eu devo deixar de sê-lo. Consequentemente, se a liberdade do outro não começa, por qualquer razão que seja, signfica então que a minha liberdade não conhece limites, se expande como quiser porque não encontra limites  na liberdade do outro. Ocupa todos os espaços e inaugura o império do egoismo. A liberdade do outro se transforma em  liberdade contra o outro.

Essa compreensão subjaz ao conceito vigente de soberania territorial dos estados nacionais. Até os limites do outro estado, ela é absoluta. Para além desses  limites, ela desaparece. A consequência é que a solidariedade não tem mais lugar. Não se promove o diálogo, a negociação, buscando convergências e o bem comum supranacional como se comprova claramente os vários Encontros da ONU sobre o aquecimento global. Ninguém quer renunciar a nada. Por isso não se chega a nenhum consenso, enquanto o aquecimento global sobe  dia a dia.

Quando há um conflito entre dois países normalmente se usa o caminho diplomático do diálogo. Frustrado este, logo pensa-se na utilização da força, como meio para resolver o conflito. A soberania de um esmaga a soberania do outro.

Ultimamente, dada a destrutividade da guerra, surgiu a teoria do ganha-ganha para superar o ganha-perde. Estabelece-se o diálogo. Todos se mostram flexíveis e dispostos à concessões e acertos. Todos saem ganhando, mantendo a liberdade e a soberania de cada país.

Por isso, a frase correta é esta: ‘‘a minha liberdade somente começa quando começa também a tua’’. É  o perene legado deixado por Paulo Freire: ‘‘Jamais seremos livres sozinhos; só seremos livres juntos. Minha liberdade cresce na medida em que cresce também a tua e conjuntamente gestamos uma sociedade de cidadãos livres e libertos’’.

Por detrás desta compreensão, vigora a ideia de que  ninguém é uma ilha. Somos seres de convivência. Todos somos pontes que nos ligam uns aos outros. Por isso ninguém é sem os outros e livre dos outros. Todos são chamados a serem livres  com os outros e para os outros. Como bem deixou escrito Che Gevara em seu Diário: “Somente serei verdadeiramente livre quando o último homem tiver conquistado também a sua liberdade”.

 

Leonardo Boff é colunista, filósofo e teólogo

 do JBonlie e escreveu: Fundamentalismo,

terrorismo, religião e paz,  Vozes 2009.