Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

De como uma aula de latim se transforma em protesto

Edição nº 1482 - 11 Setembro de 2015

Havia, no reino, um velho professor de português e latim, que se preocupava principalmente com a expressão verbal.  Quem quer que,  próximo dele,  se expressasse mal, cometendo erro gramatical,  de pronúncia ou concordância,  fazia o velho professor arregalar os olhos e, em alta voz,  corrigir  a expressão ou frase dita incorretamente.

Na classe,  era um terror.  Ainda usava a palmatória e não perdoava:  um erro de concordância verbal: duas palmadas;  de pronúncia,  três palmadas e, aí, ia a sua tabela em ascensão,  até  o castigo máximo: dez palmadas.  Ai de quem errasse,  no falar.  Os escritos eram  perdoáveis,  mas falar errado era crime de lesa língua pátria.  E  o grau máximo da tabela da palmatória era para quem empregasse os verbos impessoais no plural.  O “seu” Antonio de Pádua não perdoava um “houveram três dias que ele se foi” ou “não houveram vítimas”...  Aí, ele caía em cima...

Pois foi como aluno do professor Antonio de Pádua que o menino Miguel,  futuro conde de Cocais,  começou a aprender as primeiras letras. 

Latinista emérito,  o professor percebeu que o futuro conde tinha especial predileção pela língua mãe e passou a dedicar-lhe  maior atenção;  levou, também,  em consideração  a nobreza  do pequeno  aluno,  em meio à ignara plebe que constituía a  classe.

Certa aula,  o professor,  voz vibrante,  tonitruante mesmo,  ditou ao futuro conde,  para que ele escrevesse no quadro negro,  a seguinte  frase:                  

“COR CONTRICTUM ET HUMILIATUM,  NEC DEO DESPICIES” (*)  

e diz-lhe:  Menino, traduza...          

O Miguel fez menção de dizer algumas  palavras,  mas o Diocêncio Marques,   plebeu e vadio,  atravessou-lhe a fala e, em voz alta,  falou com galhofa:  

COURO CURTIDO E MOLHADO NEM DEUS ESPICHA.

Gargalhada geral;  o condinho enrubesceu e o professor,  tomando da palmatória,  pespegou dez  forçudas palmadas na mão  esquerda do Diocêncio...  e este morria  de rir;  pois o costume de bater na mão esquerda era para não inchar a direita, evitando  que o aluno, com isso, se desculpasse e deixasse de fazer os deveres.  Diocêncio ria a cada palmada,  porque  era canhoto...

Foi o pai desse menino quem,  no governo do barão de Alfenas,  quando se inaugurou a água encanada e o líquido continuou a faltar nas casas,  escreveu  um cartaz  e colocou-o em frente à casa onde morava:

NESTA CASA PAGA-SE ÁGUA E VIVE-SE NO SECO.

(*) Oh. Deus, não desprezarás um coração                 

      contrito e humilhado.

 

 (*) Saulo Wilson é autor do livro 

A vida burlesca e agitada

 no reino da Bucolândia