Havia, no reino, um velho professor de português e latim, que se preocupava principalmente com a expressão verbal. Quem quer que, próximo dele, se expressasse mal, cometendo erro gramatical, de pronúncia ou concordância, fazia o velho professor arregalar os olhos e, em alta voz, corrigir a expressão ou frase dita incorretamente.
Na classe, era um terror. Ainda usava a palmatória e não perdoava: um erro de concordância verbal: duas palmadas; de pronúncia, três palmadas e, aí, ia a sua tabela em ascensão, até o castigo máximo: dez palmadas. Ai de quem errasse, no falar. Os escritos eram perdoáveis, mas falar errado era crime de lesa língua pátria. E o grau máximo da tabela da palmatória era para quem empregasse os verbos impessoais no plural. O “seu” Antonio de Pádua não perdoava um “houveram três dias que ele se foi” ou “não houveram vítimas”... Aí, ele caía em cima...
Pois foi como aluno do professor Antonio de Pádua que o menino Miguel, futuro conde de Cocais, começou a aprender as primeiras letras.
Latinista emérito, o professor percebeu que o futuro conde tinha especial predileção pela língua mãe e passou a dedicar-lhe maior atenção; levou, também, em consideração a nobreza do pequeno aluno, em meio à ignara plebe que constituía a classe.
Certa aula, o professor, voz vibrante, tonitruante mesmo, ditou ao futuro conde, para que ele escrevesse no quadro negro, a seguinte frase:
“COR CONTRICTUM ET HUMILIATUM, NEC DEO DESPICIES” (*)
e diz-lhe: Menino, traduza...
O Miguel fez menção de dizer algumas palavras, mas o Diocêncio Marques, plebeu e vadio, atravessou-lhe a fala e, em voz alta, falou com galhofa:
COURO CURTIDO E MOLHADO NEM DEUS ESPICHA.
Gargalhada geral; o condinho enrubesceu e o professor, tomando da palmatória, pespegou dez forçudas palmadas na mão esquerda do Diocêncio... e este morria de rir; pois o costume de bater na mão esquerda era para não inchar a direita, evitando que o aluno, com isso, se desculpasse e deixasse de fazer os deveres. Diocêncio ria a cada palmada, porque era canhoto...
Foi o pai desse menino quem, no governo do barão de Alfenas, quando se inaugurou a água encanada e o líquido continuou a faltar nas casas, escreveu um cartaz e colocou-o em frente à casa onde morava:
NESTA CASA PAGA-SE ÁGUA E VIVE-SE NO SECO.
(*) Oh. Deus, não desprezarás um coração
contrito e humilhado.
(*) Saulo Wilson é autor do livro
A vida burlesca e agitada
no reino da Bucolândia