Chegando lá encontraram a “Casa de Mamãe” fechada, como o vigário Monsenhor Fleury havia prometido. Já há alguns meses estava à frente da paróquia esse padre, notadamente racista que havia exortado os negros a deixarem “aquela festa pagã”. Os negros foram buscá-lo em sua casa, queriam a procissão com a “Mamãe do Rosário”. O padre negou-se a atender, houve bate-bocas e o bispo Dom Alexandre, dias depois veio a Sacramento comandar um “ato de desagravo” ao ofendido vigário. Após o desagravo a sentença do bispo: estava proibido em Sacramento festas de negros do Congado. Isso perdurou por 29 anos até que, em 1977, o ex-arcebispo Dom José Pedro Costa, atendendo nosso pedido, permitiu que novamente os negros tivessem sua festa do Congado.
Como pesquisador da história local, posso afirmar que a proibição do bispo, na verdade, perdurou até o último domingo, dia 25, quando, pela primeira vez, desde 1948, os negros tiveram recepção digna por parte de um representante da Igreja em Sacramento. Mormente nos últimos anos (e os negros são testemunhas disso) não bastasse a má vontade paroquial em recebê-los, recebiam ainda palavras ofensivas, grosseiras e até criminosas nos termos da lei, mas a fé e o amor à “Mamãe do Rosário” fizeram esses heróis manter a sua sagrada tradição. Constata-se que, na história dos negros de Sacramento, os “monsenhores” são feridas e não bálsamos.
Em tempos outros, segundo crônica da historiadora Corália Venites Maluf, havia por parte dos antigos vigários, Padre Pedro Santa Cruz e Cônego Julião Nunes o mais extremado carinho e atenção para com a comunidade negra nos festejos do Rosário. Ela mesma escrevendo sobre o antigo Congado nomeou saudosos reis, rainhas e capitães e concluiu orgulhosa ter sido diversas vezes festeira de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
A Igreja do Rosário, na verdade, Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, sempre foi o coração da raça negra em Sacramento. Ali até o ano de 1876 eram sepultados os negros escravos no cemitério que havia em volta da capela. Os antigos capitães e reis do Congo eram sepultados dentro da igreja. Naquele ano a Câmara Municipal proibiu enterramentos na Igreja do Rosário e na Matriz do Santíssimo Sacramento. Acredito que desde a fundação da cidade ali no alto daquela colina havia um altar de culto à Mãe de Deus edificada pelos negros escravos, mas a primeira construção em pedras foi no ano de 1854. Essa construção de pedras permaneceu até o ano de 1921 quando a demoliram para edificar a Igreja que ainda hoje aí esta. Naquele ano de 1921 a veneranda imagem de Nossa Senhora do Rosário (a imagem menor que sempre sai nas procissões) foi levada pela comunidade negra desde a capela do Rosário, que ia ser demolida, até a Igreja Matriz, onde esperou a nova Igreja. Antiga tradição firmada entre os negros contava que a Imagem da Virgem, desde o Rosário até a Matriz, verteu copiosas lágrimas. Essa história não ficou somente entre os negros devotos, mas pessoas outras da comunidade antiga contavam isso, como a ex-diretora escolar, Adail Araújo. Essa belíssima imagem manteve até a alguns anos sua pintura original, lindíssima, maravilhosa. Muitas vezes eu ia naquela igreja somente para contemplar a expressão de doçura e suavidade no rosto de Maria. Infelizmente artista aleatoriamente contratado tempos atrás maculou a pintura original.
E foi assim que, no último domingo, enxerguei, do meio da multidão, uma nova Lei Áurea sendo assinada pelo Pároco Padre Valmir Ribeiro. Lei de alforria do Congado, do Moçambique, dos que usam a expressão do corpo, a voz, o cansaço e o suor para louvar Aquela que é o gáudio do mundo inteiro. Vi na figura do pároco Valmir os antigos párocos Pedro e Julião, amáveis, solícitos e amoroso com os filhos pequeninos da Mamãe do Rosário.
Novos tempos, novas bênçãos, tempo de fartura, tempo de paz, tempo de reconciliação, sobretudo, tempo de volta à Casa do Pai, pelas Mãos de Mamãe, cuja Casa cheira cravo, rosa e flor de laranjeira.
Louvado seja Deus!!!
Amir Salomão Jacob