O ator Wilson Rabelo, o maior interprete de Carolina Maria de Jesus, voltou a Sacramento para duas apresentações do monólogo “Carolina: o Luxo do Lixo”. Um texto comovente que resume de forma poético seu best-seller, 'Quarto de Depesjo'. O seu retorno à terra natal de Carolina deve-se ao fato de que a escritora está ligada ao seu trabalho individual e aqui é o seu berço. “A minha relação com Sacramento tem mais de 15 anos, quando eu estava preparando a obra dela e vim ter contato com o universo dela e com a ideia e a perspectiva que temos da realidade do Brasil e da vida”. Rabelo e Carolina têm algo em comum, assim como todos nós: somos todos mineiros. “Sou mineiro de Belo Horizonte e ela é mulher, é negra, brasileira, artista e é mineira e para nós isso é muito importante”, afirma e reflete sobre o que herdamos desde os idos do século XVI.
Carolina é única
“- Nós lidamos com uma parte muito importante do século XVI, que foi o momento áureo dos diamantes, do ouro e isso nos deu uma experiência sociológica muito forte, uma forma muito especial de entender a cobiça, a opressão, a força do espírito, da fé, da crença. Sempre lutamos essa luta do rochedo contra o mar. E Carolina Maria de Jesus é isso: a expressão de um grupo, de uma camada social, que não tem outro representante na literatura, senão ela. Carolina nasceu em 1914, muito próximo da nossa abolição (1888), e ela fala de um tempo, de uma realidade que o Brasil ainda está vivendo, como o escravagismo em muitas relações de trabalho. Imaginemos então isso em 1914...”, afirma.
Carolina forjou sua fala no bronze
“Há 100 anos atrás, ela fazia parte sequer do grupo que tinha acesso à alfabetização, mas forjou a sua fala, seu pensamento, no ferro, no bronze, na imprensa onde está para sempre. Ela é eterna. Imprimiu um tempo, um senso crítico no mundo, mudou a relação do falar sobre si mesmo, exerceu o poder que temos de criar, imaginar, que ainda está restrito a um grupo seleto e dominante e ela conseguiu quebrar isso. Ela esteve o tempo todo atenta ao que ela sentia, tinha a capacidade de se identificar consigo mesma, sabia entender a dominação sobre o seu grupo e sabia como contribuir com o seu grupo, o coletivo onde vivia, através da arte ela denunciava os problemas da favela. Tal afirmação, nos deixa uma interrogação: Quantas Carolinas existem hoje?
Um outro tipo de cultura
Para Rabelo, é preciso lutar para construir e difundir um outro tipo de cultura. “Uma outra maneira de entender o nosso tempo, o nosso mundo e que seja uma cultura inclusiva, principalmente, nas diferenças. Hoje não queremos apenas trabalhar com o pensamento econômico. Aliás, o que queremos realmente? Qual o preço queremos pagar por uma economia? Será que ele significa acabar com toda a nossa terra, com a nossa cultura, com a nossa ecologia? Nós queremos este tipo de alimentos? Que tipo de comida queremos pôr nas nossas mesas? Temos sim, várias maneiras de criar uma cultura mais inclusiva, mais ecológica. O ser humano é parte dessa cultura quando falamos em ecologia, não estamos falando de bois, árvores, falo de pessoas com sua natureza orgânica, perceptiva, espiritual, psicológica”.
Opressão ainda presente
“O Brasil bate recorde com pessoas com distúrbios mentais, psicológicos e a meu ver, isso tem a ver com a opressão que destrói o indivíduo no seu cerne. E isso começa, quando o homem não trata a si mesmo, quando não fala de si, não analisa o seu lugar, não entende o meio do qual ele faz parte. E Carolina soube muito bem vencer isto, ela fez isso em 1960. Foi a primeira pessoa que conseguiu dar uma visão do mundo, a partir de uma camada social, que para a maioria não tem ponto de vista, nem entendimento da realidade do planeta. Ela, a partir da sua janela, que era o substrato mais claro da desigualdade, mostrou a realidade da favela.
Prioridade da luta
“Trabalhamos com a afirmação da nossa identidade, que é o que nos faz entender a prioridade, que interessa a todos: a questão da mulher, da moradia, do trabalho... E cuidar de si mesmo é trabalhar. Trabalhar não é só produzir numa linha de produção. Veja bem, Carolina queria ter tempo para escrever. Escrever para ela, era uma forma de vida. Ler, para ela, era viver, entender como o outro entende o mundo. Para ela, viver era falar para o mundo de uma maneira que chegasse em qualquer lugar, em qualquer época. Por isso, ela é tão estudada, em Carolina existem várias carolinas. Eu, como artista, me nutro muito mais na sua história de vida, do que apenas interpretando-a. Vale a pena mostrar isso para as pessoas”.
Eu escutava o silêncio deles
Após sua performance, na apresentação da peça, Wilson Rabelo foi aplaudidíssimo pelos presentes, em sua maioria, estudantes. Essa resposta dos jovens impressionou Rabelo: “Uma das principais razões de fazer a primeira apresentação na EE Carolina Maria de Jesus é porque a escola leva o seu nome. Quer dizer, a obra de Carolina faz parte do pensamento e do universo da escola e os estudantes estão estudando a sua obra. Lá eu tinha uma plateia de jovens que leem Carolina Maria de Jesus, e este foi o grande privilégio, porque é uma geração que já tem contato com sua obra. E isso tornou a escuta do diálogo muito prazerosa, tanto para mim, como para eles que iam tirando suas conclusões e revendo suas posições perante Carolina. Foi um momento especial, de muita interação. Eram jovens que estavam desfrutando de mais um conhecimento sobre Carolina. Então foi um encontro muito integrado. No final do espetáculo eles estavam tão disponíveis, interessados em me escutar, que eu escutava o silêncio deles”.
Não preciso de homem para nada
Ao ser questionado se nas apresentações do monólogo tem sentido que a presença de Carolina é cada vez mais forte e conhecida do público, Rabelo respondeu:
“Carolina foi uma mulher que há quase 70 anos já buscava pelo espaço da mulher. Ela não era apenas uma escritora negra, era uma mulher negra e essa luta é a luta que hoje é prioritária em todo o planeta. Então, podemos dizer que Carolina anteviu um momento de luta, que era sempre. O importância de Carolina antes da obra é também a de uma mulher, mãe de três filhos, e como ela dizia, 'não preciso de homem para nada'. Com isso, podemos concluir que, o que a mulher hoje busca legitimar, ela já havia começado isoladamente, solitariamente desde sua juventude. Por isso está cada vez mais atual e presente”.
O Rabelo filósofo, artista e formador
“Essa juventude está quebrando tabus, que a humanidade sofreu há milhares de anos. As questões que essa geração está enfrentado, buscando afirmação da sua identidade em que devemos acreditar, porque embora ela ainda ao esteja definindo o seu caminho de luta, ela sabe exatamente o que ela não quer. Então, quando ela está ouvindo uma música, assistindo a um filme, lendo um livro é porque ela acredita, não se submete mais ao julgo do sistema, tem ciência da sua individualidade. Eu, particularmente, acredito que fazer arte para essa geração vai ser algo mais profundo, mais questionador, porque é uma geração que está quebrando todos os parâmetros de expressão e de identidade”.
Que Brasil você quer?
“Espero um país em que cada vez mais as pessoas não aceitem ser manipuladas, que elas sejam determinadas e que saibam o quanto elas podem determinar a maneira como querem ser tratadas, pela maneira como se tratam. As pessoas que se corrompem, vendem seu voto, que não buscam o mínimo conhecimento para entender como e com o quê, um representante nacional, estadual e municipal, pode contribuir com a comunidade, elas não fazem mal só para elas, mas para todos e as próximas gerações da sua própria família. Um erro nosso, não nos atinge apenas em quatro anos, porque o mal de uma administração pode deixar mazelas que duram anos para serem reparadas, principalmente, no que diz respeito ao trabalho e ao meio ambiente. Isso, porque até para sofrer precisamos do meio ambiente, por isso ele precisa cada vez mais ser democratizado”.