Nasci quase que embrulhada nas páginas do Jornal ET, que também nasceu num conturbado contexto sócio-político do Brasil de 68. Garotinha, meu tio me levava como 'jornaleira' para ajudá-lo nas distribuições do pasquim, o que me fez apaixonar pelo Jornalismo e lá fui eu, nos passos do jornalista que o fundou. Quando nasci, 1975, o 'Estadinho' já era uma criança com juízo. Juízo? Palavrinha despudorada para aquele irreverente grupo que tocou o jornal nos primeiros anos. E assim fui crescendo entre uma edição e outra; entre uma perseguição e outra e até uma prisão e outra... O ano de 68 foi um marco precioso para Sacramento, quando o jovem Walmor Júlio Silva, então com 20 anos, fundou este jornal, em pleno ano em que a ditadura militar, sob Costa e Silva, editou o AI 5 (Ato Institucional nº 5). Na pauta, mesmo de longe, via net, a cabeça de uma entrevista carinhosa, diria, a releitura de um papo falado há dez anos atrás... lembrando agora 50 anos do jornal 'O Estado do Triângulo'. (Ruth Gobbo)
Ruth - Como nasceu o jornal 'O Estado do Triângulo'?
Walmor - O jornal ET nasceu dentro de uma conjuntura político-social muito conturbada, vivida pelo país nos anos 60. Em 1º de novembro de 1968, quando editamos a edição piloto do jornal, já estávamos no quarto ano de um golpe militar que levou o país a uma ditadura que prendeu, torturou, matou e desapareceu com centenas de brasileiros, entre homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos, clérigos, camponeses, estudantes... Na conta da Anistia Internacional, 434 brasileiros morreram e 30 mil foram torturados. E aproveitando também um movimento emergente que tinha como sonho separar as regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba para criar o estado do Triângulo. E, ainda, dinamizar o marasmo cultural e artístico existente na época em Sacramento.
Ruth - Aos 20 anos, você fazia o quê?
Walmor - Eu estava saindo do curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia Santo Tomás de Aquino/Uberaba, com as ideias de todos os filósofos na cabeça. De Sócrates a Marx, de Spinoza a Sartre, alguma coisa boa tinha que sair daí de dentro. Foi quando criamos o GES - Grupo de Estudos Sociais, cujo objetivo era, 'A promoção e conscientização do homem pelo homem, através da ação', estampado na capa da primeira edição. O jornal ET nasceu fruto da Guerra do Vietnan (1955 a 1975), da Primavera de Praga (Jan a ago de 1968), passou pelo grito dos estudantes da Universidade de Paris (Maio de 1968), pela morte de Luther King nos Estados Unidos (4 de abril de 1968), gritou com a UNE e cantou com Vandré: 'Quem sabe faz a hora, não espera acontecer' (2º lugar no Festival Internacional da Canção daquele ano)...
Ruth - Um Grupo de Estudos Sociais em 1968, bem colado ao AI 5, que coragem foi essa?
Walmor - Na verdade, a coragem foi de todo o grupo, mas a ideia nasceu do Olavinho Caramori, sacramentano que estava fazendo engenharia na UNB. E a UNB naquela época era a referência que tínhamos da resistência contra a ditadura. Olavinho nos contava das invasões da Universidade pelo exército, o trabalho da UNE - a União Nacional dos Estudantes, e nós aqui, na pacata Sacramento, 'vivendo como os burros', citando Gabriel Garcia Marques, em '100 anos de solidão'. E topamos a ideia. Criamos o ET em 1º de novembro e o general Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro.
Ruth - Chegaram a pertencer a algum grupo do tipo ALN, MR 8?...
Walmor - Não, o GES era coisa local. A 'revolução' proposta pelo GES era uma revolução na cabeça das pessoas, longe de luta armada, tipo ALN de Marighella. Na nossa incipiente ideologia, era algo como 'promoção do homem pelo homem através de sua conscientização'. Talvez, até, uma metáfora. Alguns anos depois, revendo esses conceitos, eu me dei conta de que, apesar de utópica, aquela transformação tinha um sentido muito forte, não no ponto de vista político, mas no ponto de vista evangélico. O sermão da Montanha fala muito perto dessa 'transformação', que até usei como tema da peça, 'Alienados', escrita nos anos 70 para minhas alunas do curso Magistério. “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça...”
Ruth - 1968 foi um ano fantástico, não? Estou me lembrando do Festival de Arte e Cultura do Colegial - FACC de 98, quando vocês reapresentaram 'Alienados'. Estava lá fotografando...
Walmor - Eu diria que 'os Anos 60' foram fantásticos! Amávamos os Beatles e os Rolling Stones, protestávamos com Chico e Vandré, dançávamos o Rock in roll no Sacramento Clube, vibrávamos com Pelé e Garrincha... Já o 1968, como diz, Zuenir Ventura, foi 'O ano que não terminou', no seu excelente livro. Sobre os 30 anos do golpe de 64 (1998), eu me lembro também, claro. Recém eleito diretor da Escola Coronel reapresentamos a peça Alienados, montada em cima daqueles acontecimentos, mas fazendo uma releitura das três juventudes existentes na época: a Reacionária, representada pela Jovem Guarda, que se adaptava ao golpe; a Revolucionária, que combatia o golpe e lutava pelo retorno da democracia; e a Alienada, a juventude hippie, contra o golpe, mas não fazia nada, vivia o 'Make love, not war'. Outra iniciativa foi reativar o Grêmio Estudantil, com o objetivo de incentivar o protagonismo juvenil, a liderança e a formação política tão carente e alheia na vida estudantil, a partir do golpe de 64.
Ruth - Por isso hoje a 'Escola sem partido'...
Walmor - Bem lembrado! Aberração!! Absurdo! A escola é, fundamentalmente, um espaço democrático, de debate, de exposição e defesa de ideias e ideais, seja do socialismo à extrema direita. Essa formação política, que vem desde Platão ou antes... Aristóteles, já dizia há 400 a.C. que 'o homem é um animal político', chamando atenção dos professores no sentido de reconhecerem os estudantes como um cidadão da 'pólis' que pensa, age, debate, defende, grita, cobra. Lembro novamente Gabriel Garcia Marques. Em '100 Anos de Solidão' tem uma personagem feminina maravilhosa, Úrsula, que defendia a busca de um mundo melhor. “Além dos muros da aldeia há um mundo maravilhoso, e nós aqui dentro vivendo como os burros”. Algo assim...
Ruth - Como combater esse tipo de escola?
Walmor - Com o protagonismo juvenil. Com os grêmios estudantis, com as uniões estudantis, com congressos e encontros estudantis, com grupos de arte e teatro. Essas entidades que incentivam as ações democráticas mostram o caminho de como combater a Escola Sem Partido, essa famigerada PEC 241. Quer um exemplo dessa resistência? Aquela adolescente do Paraná, a Ana Júlia Ribeiro, que, aos 16 anos, na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná, silenciou os deputados justificando a ocupação de centenas de escolas e denunciando a morte de um colega, a qualidade no ensino, a nucleação, a precariedade física dos prédios escolares públicos, reivindicando a introdução de Artes no currículo do Colegial, a continuidade da Filosofia, da Sociologia...
Ruth - Você acha que o celular tem um pouco de culpa nessa alienação?
Walmor - Acho! Tem muita culpa. Principalmente, porque ele tirou do adolescente, do jovem o hábito da leitura, base do saber ler, interpretar e compor textos com coesão, coerência, riqueza vocabular e linguisticamente correto. O imediatismo tomou conta, as boas histórias dos livros e jornais foram substituídas pela informação técnica, barata, de fala claudicante. Como dizia Caetano lá nos anos 60, 'sem lenço nem documento'... Pergunte aos jovens de 16 anos hoje quem é Ana Júlia, quem é a vereadora Marielle Franco?... Se conhecem a vida pregressa de Bolsonaro, de Haddad, Ciro, Marina... Poucos, muito poucos conhecem para poder fazer uma escolha consciente. Foram levados pelas mentiras do celular ou pelo o que dizia o Boner no JN.
Ruth – As fake news... Ficamos sabendo aqui do alarde que deu os Kit Gays do Haddad.
Walmor – Então, mentira que começou veiculada no JN com declaração do próprio candidato Bolsonaro. Esse fato foi levado a público e desmentido na época pelo Ministério a Cultura quando Haddad foi prefeito de São Paulo. Acontece o seguinte, ricos ou pobres, somos, politicamente, uma massa de 80% ou mais, de ignorantes e incultos. Assim como se deixaram levar pelo 'pato' da Fiesp, acreditaram na mentira do candidato adversário levada em rede nacional, generalizando ainda mais a manifestação do ódio ao PT, como se fosse o único partido corrupto da república. Por conta de quem?...
Ruth - Das redes sociais...
Walmor - Que eu chamo de (anti)sociais, por conta de mentiras, eufemisticamente amenizadas para 'fake news', espalhadas pela internet através de provedores robôs. O celular criou a notícia relâmpago, sem o contraditório, acabou com o criticismo. Então, voltando à 'Escola sem partido' e ao Golpe de 64, que pass em branco pelas escolas, aliás, que está virando 'Movimento', falta esse censo crítico ético e histórico em relação ao que foi a ditadura de 64, defendida por Bolsonaro, e o que se seguiu nos 21 anos seguintes, conforme relatório d'A Comissão Nacional da Verdade. Essa falta de senso crítico, com todo respeito, esteve estampada no coração cheio de ódio dos eleitores contra o PT, que preferiram Bolsonaro a Haddad, a Ciro, a Alckmin, a Marina... Gabriel Garcia Marques continua com razão.
Ruth - E os 40, 50 anos do ET e do Golpe de 64, foram lembrados pelo jornal e pelas escolas, como fizeram em 98?
Walmor - No jornal, timidamente, através de inserções semanais de fatos ocorridos naqueles anos iniciais. Mas há projeto de se fazer algo mais, mesmo que seja nos próximos anos. Nas escolas, não sei. Fora do ambiente escolar há mais de dez anos, o que percebo é que continua ausente das escolas a formação política, a falta do protagonismo juvenil. Não há formação de líderes nas escolas mais. Aquele aluno/aluna presidente, secretário, tesoureiro, diretor esportivo, social do Grêmio Estudantil, ponto de partida para sua futura atuação partidária política, desapareceu. Daí a carência de bons políticos. A única escola que tem Grêmio Estudantil, entidade que representa o corpo discente da escola, é a Escola Coronel. Como sepultada está a União Estudantil Sacramentana, entidade representativa dos estudantes de todas as escolas da cidade e zona rural, desde os anos 80...
Ruth - Vamos saber aí quem é quem nessa história. Quando você fala de 'todo o grupo', está se referindo a um grupo bem politizado?
Walmor - Muito politizado, especialmente comparado com a juventude de hoje. Tanto política como ideologicamente, por conta, principalmente, do engajamento nos movimentos estudantis, por conta da leitura mais assídua, de participação em encontros, palestras... E sem essa terrível ideologização da rede Globo e das redes (anti)sociais. O Brizola dizia o seguinte: “Quando a rede Globo for a favor, o povo deve ir contra; quando a rede Globo for contra, o povo deve ir a favor”.
Ruth - Eu me lembro ainda quando estudante do ensino médio, líamos muito aquelas obras da literatura brasileira...
Walmor - Sim, líamos muito mais. Às vezes, me pergunto, por que os jovens não leem mais esses escritores, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, livros do programa curricular do ensino médio. Havia também uma literatura estrangeira muito legal, de Jean Paul Sartre, Marcuse... Os meninos hoje vão para o Enem com o resumo das obras lidas na internet. Podem se sair bem nessa teoria, mas na Redação...
Ruth - Estávamos falando do grupo...
Walmor - Isso. Nós tínhamos dois grupos bem atuantes. O mais 'velho', que iniciou essa vanguarda na provinciana Sacramento há mais tempo, através da Organização dos Universitários Sacramentanos -ODUS, fundada em dezembro de 1961. Dizendo-se apolítico, o grupo tinha uma preocupação muito grande com o desenvolvimento e o progresso da cidade. Tanto que, depois, vários de seus integrantes enveredaram-se na política, e se saíram muito bem, elegendo quatro vereadores e um prefeito. A ODUS foi fundadora do revolucionário, 'O Passa Perto'. Fizeram parte do grupo, Dr. Jamil Salim Leme, Serginho Rezende, Luiz Fernando Valadares, José Caramori, o Hélsio Duarte, Ivan Cordeiro, José Arthur, Evandro Gobbo, Clermon Castor, José Armando Maluf, Dalmo Scalon, o Raul do Conde e o José Alberto, eleito por aclamação o seu primeiro presidente e, dez anos depois, prefeito da cidade. Pessoal cheio de ideias e de coragem.
Ruth - Mas era o Clube do Bolinha! (risos).
Walmor - Não, tinha Luluzinha também. Desculpe, na fundação da ODUS estavam presentes três universitárias, as jovens Maria Salete Cabral, a Maria Elisa Bonatti e a Maria de Lourdes Mendes. A Da. Célia e a Mariú também fizeram parte da ODUS.
Ruth - E o outro grupo?
Walmor - O outro grupo era o nosso. Nessa época, ainda estudantes secundaristas. Nossa militância era através da União Estudantil Sacramentana (UES), que era ligada à UCMG - União Colegial de Minas Gerais, que, por sua vez, era ligada à UNE, a União Nacional dos Estudantes. Participávamos de vários congressos realizados no estado. Esse grupo era formado pelo Nonô, Zulmar Ferreira, (o Azulão) Paulo Neto Borges (o grande Cocão, que morreu tão jovem), o Mário Guarato, o Elvécio Barbosa Lima, o Ariston Timóteo de Almeida, o José Rosa Camilo, Luiz Rodrigues, dentre outros. Dessa leva aí, despontou o nosso grupo, já no fim dos anos 60, quando criamos o GES, em1968. Éramos o Olavinho Caramori, o próprio Ariston Timóteo, Saul de Souza Viera, Márcio Cunha, Jaiminho Araújo, o Shiro Karashima, o Osmar Gonçalves (um rapaz muito louro, que a gente chamava de Vanuso), o Cilmo Alencar e eu... Todos com aquela utopia de 'transformar o mundo'...
Ruth - Não havia um grupo ligado à Igreja Católica?
Walmor - Estou chegando lá. Desse último grupo, despontou a JUS - Juventude Unida de Sacramento, liderada pelas lideranças religiosas, recém chegadas a Sacramento, o redentorista Pe. Gil Barreto Ribeiro, vigário que assumiu a paróquia no lugar de Pe. Saul Amaral e Ir. Maria Benigna de Jesus, da Congregação S. José de Cluny, que chegou para administrar a Santa Casa. Pe. Gil fundou a JUS e Ir. Benigna e José Alberto dirigiram um curso de Catequista, com aulas nas tardes de sábado, na Escola Coronel. Foi quando iniciamos com eles um trabalho bem legal no antigo Atrás do Morro, hoje bairro João XXIII. Eram aulas de formação cristã, tipo das CEBs - Comunidades Eclesiais de Base, de Dom Helder Câmara. Formação cristã para transformar o mundo diminuindo as desigualdades sociais... Estamos abrindo esse grande parêntese para explicar que o protagonismo e a liderança surgem desses exemplos, dessa formação, na convivência e na interatividade entre os jovens. Esse era o contexto em que o Jornal ET nasceu.
Ruth - Muita pretensão transformar o mundo, não?
Walmor - Sim, claro, mas era uma metáfora, pra explicar que o ET tinha esse ideal de luta contra a ditadura que, para nosso gáudio, culminou com as Eleições Diretas para Presidente, porém, depois de 21 anos de um estado de exceção e arbítrio, mas conseguimos. E construímos muita coisa boa nesse período, em cima da cultura e arte, tendo o GES como ponto de partida. Na edição do dia 1º.2.1969, noticiamos o espetáculo que apresentamos no Cine Capitólio, Festival de Teatro Moderno', juntando o pessoal do jornal, que já citei, com outras feras, Dr. Amur Ribeiro, Dr. José Alberto, Ivone Regina, Da. Célia, grandes professores, e algumas meninas, Heid, Mitsi, Cleise. Mais tarde fizemos 'O Pagador de Promessas' com Bosquinho Araújo, Adriana Scalon, Gilberto Veiga, Bertim, Munir, Abadia Santos... e muitas outras peças que não me lembro mais... No Seminário do SSmo. Redentor, onde comecei a lecionar a partir de 1970, apresentamos 'Alienados', 'Morte e Vida Severina', 'Nadim, Nadinha contra o Rei de Fuleiró', 'Milagre das Águas... Que grupos de teatro temos hoje na cidade? Só no Seminário fiquei como voluntário até 1995, sempre trabalhando com Arte e Cultura.
Ruth - Naquele ano de 1968 quantos jornais circulavam em Sacramento?
Walmor - Não me lembro bem. Se não me engano, apenas 'A Marcha do Estudante', o jornal da União Estudantil Sacramentana. A UES foi fundada em junho de 1962, depois da ODUS, tendo como primeiro presidente, Arnaldo Zandonaide, o Nonô. E logo fundararam 'A Marcha do Estudante', que circulou até o desaparecimento da entidade. Começou como um jornal mimiografado. Nessa fase eu trabalhei nele, como secretário da UES. Mais tarde, creio que na gestão do Júlio Bonitinho, ele passou a ser impresso. 'O Passa Perto', o jornal da ODUS, acabou em dezembro de 1964, na edição 18. A edição número19, de janeiro de 1965, infelizmente, circulou com o nome de 'O Correio de Sacramento'. Mudaram o nome por conta de política... Minha paixão pelo jornalismo vem daí, eu me lembro que aguardava ansioso as edições d'O Passa Perto a cada final de mês.
Ruth - Conheço essa história... Não foi por conta de um pedido de Magalhães Pinto, então governador de Minas, em visita a Sacramento?
Walmor - Sim. Magalhães foi um dos líderes do golpe de 64. O título 'O Passa Perto' dava, segundo os políticos, uma imagem pejorativa à cidade. Mas ele foi criado com essa intensão, de que tudo passava perto de Sacramento e nada chegava à cidade. A rodovia asfaltada passava perto, a estrada de ferro passava perto, o telefone passava perto, a luz elétrica passava perto, a água passava perto... Então, por que mudar? Foi quando o governador discursou da sacada da antiga Prefeitura sugerindo a mudança do jornal para 'Revolução', em alusão ao golpe militar de 64, porque eles não aceitavam o termo golpe... Como o ministro Toffoli, agora bem recente, referiu-se à ditadura como 'Movimento de 64'. O 'movimento' do ministro matou quase 500 brasileiros e torturou milhares. Mas a ODUS, reticente, concordou apenas em parte, aceitando que o título poderia, sim, denegrir a imagem da cidade, mas sem adotar a sugestão de Magalhães, que pedia 'Revolução', porque foi golpe mesmo. E mudaram o nome de 'O Passa Perto' para 'O Correio de Sacramento', que morreu pouco depois. Então, o ET nasceu assim num momento de marasmo jornalístico na cidade.
Ruth - E por que 'O Estado do Triângulo'?
Walmor - No dia 28 de outubro de 1967, um grupo formado por lideranças políticas, empresariais e simpáticas à causa de emancipação das regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba reuniu-se em Araxá e redigiu o Estatuto da 'União para o Desenvolvimento e Emancipação do Triângulo', mais conhecida pela sigla, UDET. Liderada por um político uberabense, o Ney Junqueira, naquele início, estavam buscando apoio das lideranças regionais, prefeitos, vereadores, simpatizantes para que o movimento ganhasse força. Em Sacramento, uma das lideranças mais motivadas foi a do grande Prof. Amur Ribeiro. Daí, me veio essa ideia do nome, associando à causa da separação o nome do jornal. E pegou. Nasceu assim 'O Estado do Triângulo'. Um novo estado englobando as regiões do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro, com uma área de 120 mil Km2, 75 municípios e uma população, hoje estimada em mais de 2 milhões de habitantes, e que, até hoje não tem uma rodovia com pista dupla ligando à capital. Quem sabe chega agora com Romeu Zema, um governador autoparanaibano. Quanto a UDET, infelizmente, morreu. Continuamos aí durante 50 anos abastecendo as burras do estado e recebendo merrecas em troca.
Ruth - E que fim levou o GES? Também morreu?
Walmor - Como entidade jurídica ele já nasceu morto, nunca existiu. Só nas nossas cabeças. Mas as suas ideias continuaram existindo através do jornal nesses últimos 50 anos. Quanto aos companheiros, à medida que iam concluindo o ensino médio, eram obrigados a sair de Sacramento para continuar os estudos fora e outros idealistas aderiam à causa, como o Efrém de Souza Vieira, o Astolfo Araújo, o João Bosco Martins, José Luiz Pucci, José Luiz Martins (Catão), Ivone Regina, Sandra Francesca... Mais tarde colaboraram o Júlio Gaspar Jerônimo, Maria Luísa Silva Melo, Andréa Caldeira, Cleonice Castor, Saulo Wilson... Mais recente, outros que nos prestigiam como Frei Boff, Reverendo Luiz Viana, Mariú Cerchi, Dom Paulo Mendes, Ricardo (Da Matta)...
Ruth - Está esquecendo do Bertim...
Walmor - Sim, mas de propósito. Quero fazer um reconhecimento em separado. O jornal ET contou com quatro grandes esteios naqueles anos 70, sem os quais não teria sobrevivido a essas cinco décadas: o Ariston Timóteo de Almeida, homenageado ainda hoje como 'Presidente de Honra'; o Alberto de Souza Vieira, o grande Bertim, o Pe. Gil Barreto Ribeiro, então missionário redentorista, e a Sônia Borges, a quem a gente carinhosamente chamava de Magrela. E hoje, a turma da casa, as jornalistas Maria Elena de Jesus, você, Ruth Gobbo, a responsável pela diagramação, Leany Vieira, a Manja e Mandin na publicidade e nossos jornaleiros, Rocha, Ian e Gustavo. A todos agradeço de coração, sem me esquecer de minha família, irmãos e irmãs, esposa Maria Luísa e filhas Petra Maria e Anya Maria, a quem tanto agradeço e me desculpo, por tantas vezes ter-me privado de seu convívio tão abastado de amor, por conta das letras.
Ruth - Qual foi a linha editorial do jornal naqueles primeiros anos e o relacionamento de vocês com os poderes constituídos.
Walmor - O jornal nasceu, como eu disse, com aquele espírito libertário dos anos 60. Por exemplo, éramos muito mais 'Hair', Luther King, Chico e Caetano do que apologistas da Guerra do Vietnã, da ditadura militar brasileira... Já no primeiro número, o Xavim Caramori dizia: “Temos que lutar pela promoção do homem, não pela promoção da máquina, do capital ou do Estado”. E nessa linha, às vezes com alguma ostentação político-partidária, o ET continuou produzindo notícias, ouvindo o povo, os anseios da comunidade, denunciando, clamando, mas principalmente noticiando os fatos e acontecimentos realmente ocorridos. O que Hannah Arendt chama de 'verdade factual'. Acho que nesse meio século de existência somos um acervo histórico e cultural considerável.
Ruth - Mas houve também nos anos seguintes uma relação mais conturbada, que culminou em prisão, não?
Walmor - Muito conturbada. Fazendo uma releitura e até uma mea-culpa, ambos os lados se excederam. Nós nos deixamos levar, por conta de um contexto de adesão a um ou outro grupo político, por um caminho que levou ao limite uma relação que deveria ser saudável e, fundamentalmente, profissional, isenta de sectarismo, claro, sem perder nossa identidade ideológica. Por outro lado, a falta de tolerância de políticos em relação à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa foi sempre ferrenha. Daí o conflito, que culminou com a cassação do título de Utilidade Pública do jornal, a página em branco de uma das edições do jornal, mostrando 'o progresso da cidade naquele ano de 1975' e minha posterior prisão, em 1976, quando um grupo de policiais militares, armados até os dentes, literalmente, me sequestrou na porta da Escola Coronel me transportando preso em camburão até à capital. Bem pior do que 'prisão coercitiva'.
Ruth - Por que cassaram o título de Utilidade Pública do jornal?
Walmor - Por conta da falta de tolerância à liberdade de expressão... Especialmente por conta de um artigo publicado, 'A guerra dos órgãos', uma bobagem anônima, comparando, maldosamente, a Câmara Municipal, pelo fato de 'travar' muitas matérias, a um certo órgão do corpo humano. Dos 11 vereadores, apenas Dalmo Scalon, absteve-se de votar. Por nove votos e uma abstenção, cassaram o título. Na edição de Natal, publicamos a página em branco; em março, me prenderam como terrorista, subversivo dos mais perigosos.
Ruth - Não te fez desanimar?
Walmor – Essa pergunta foi feita ao pensador William Faulkner, ele respondeu: “Se eu tivesse que escolher entre a dor e o nada, eu escolheria a dor”. Não quero dizer que nesse meio século de vida fui um masoquista que ama a dor, não. O que quero dizer é que o ET continuou sendo esse veículo porta voz da comunidade. Ninguém pode prescindir de informações, e nesse viés o jornal é também um poderoso e eficiente instrumento de educação. Por isso o chamam de 4º poder. Se a Globo quisesse, em três dias, ela detonaria Bolsonaro com seus 75 milhões de telespectadores. Só não o fez, porque o seu concorrente foi Haddad. E ela tem ódio visceral ao PT. Mas vem aí briga de gigantes!! Dos quase R$ 2 bi de publicidade oficial, a Globo mama 75%. O bispo da Universal, de olho no seu fiel devoto, desculpe, no seu fiel depósito, vai entrar na arena, de capa e espada, desculpe de novo, de Bíblia e espada.
Ruth - Revendo hoje essa história, mesmo diante de todos esses revezes, valeu a pena?
Walmor - Sem citar Fernando Pessoa e sem ser modesto, sim. Amo o que faço. Fui bom professor e sou bom jornalista. Fui bom aluno e bom de bola... Nenhum conceito excelente, sem falsa modéstia. Peço a Deus saúde e fé para continuar acreditando na visão cristã e dialética de Marx, de dar voz e vez ao povo oprimido. Se Deus me der vida e saúde, quero imitar o ativista político e escritor francês, Jean Paul Sartre, já velhinho, distribuindo panfletos político-estudantis nas ruas de Paris. Ou gritando o que escrevi na peça Alienados: 'Quem compra um jornal compra uma ideia'.
Ruth Gobbo - E finaliza...
Walmor Júlio Silva - ... afirmando que sem imprensa livre não há liberdade. E sem liberdade o pensamento do povo não chega aos governantes, cujo governo não logra êxito, nem tem existência prolongada e sadia, especialmente caso faça ouvidos moucos à voz do povo estampada nas páginas dos jornais. Então, Ruthinha, valeu, sim, a pena. Repetiria, tudo de novo, principalmente, se tivesse comigo todos esses amigos/as que me ajudaram a construir essa bela história de meio século de vida. Mais uma vez, obrigado a todos.