Há pessoas que não se contentam com uma vida de acordar e dormir, trabalhar e divertir-se, por isso fazem da vida muito mais que o viver, pelo sentimento de ser útil; fazem-na de doação e serviço aos seus e ao próximo, que abrem as janelas do coração, vivem para servir: assim podemos definir, em princípio, Íris Cassiano (foto), 70. Sacramentana, a quinta dos sete filhos de Nicanor Cassiano da Silva e Joana Fornazier, ambos falecidos, Iris nasceu ali na rua Afonso Pena, onde cresceu com os irmãos Eurípedes, Antonio, José Antonio Gilberto, Carlos e Maria Alice e onde ainda reside e mantém a tradição da família, na que, literalmente, podemos chamar de, 'Casa da Mãe Joana'. Ali é o ponto de encontro dos irmãos, cunhados, sobrinhos... “Cada um que chega, mesmo que fiquem hospedados noutro lugar, ali é o primeiro lugar onde chegam. Ali é o ponto do almoço. Eu mesma, diariamente almoço com Iris e trago o almoço pro Gilberto na loja”, conta a irmã Maria Alice. Mas vamos à entrevista.
ET - Vamos começar já na idade escolar. Onde foram os estudos? Seus professores, colegas...
Iris - Os estudos foram poucos, só até o quarto ano e estudei no Grupo, EE Afonso Pena, onde estudava a maioria das crianças antigamente. Os professores, não, as professoras, foram as do Grupão, a única escola onde estudei. Fui aluna da dona Eleuza, dona Vanda, dona Adail e dona Sílvia. Tive muitos colegas, muitos já faleceram como a Terezinha Rufino, Leuza Silva, Celma Scalon, o Luiz Magnabosco (Dídia) e muitos outros, que com o passar do tempo a gente esquece os nomes. Terminei o quarto ano e fim. Antigamente, os pais achavam que terminou o quarto ano não precisava estudar mais e não havia a obrigatoriedade.
ET Principalmente as mulheres, tinham que se dar bem nas 'prendas domésticas'. Aí parou e já foi pro fogão? (risos).
Iris – Sim, comecei ajudando mamãe em casa e papai trabalhava com taxi. Aos 14 anos entrei na Telefônica de Sacramento, empresa que implantou os primeiros telefones fixos da cidade, no cargo de telefonista. Mas vi que era preciso estudar mais. Não fiz isso, mas investi nos meus irmãos mais novos. Incentivei a Maria Alice a fazer o curso Normal. E vi que era pouco. Fui fazer enxovais de bebê, tricô e bordado, pra pagar a faculdade dela.
ET – E os irmãos homens?
Íris – Os irmãos mais velhos, José Antônio e Gilberto foram para Araxá; Eurípedes e Toniquinho foram para Uberlândia, daí ficamos os três em casa, a Maria Alice, o Carlos e eu. Acho que, por esse motivo, papai não queria que Carlos também fosse embora.
ET – Ajudou também o Carlos?
Íris – Sim, o Carlos se formou em Contabilidade aqui e trabalhava com tio Pedro Zandonaide. E quando saiu de casa foi um auê... Só que ele tinha uma alergia devido ao pó dos sacos de cimento que carregava, devido a uma bronquite. Nesse ínterim, o Mário Sortino, um empresário paulista veio buscar jovens para trabalhar em Santo André. Ele quis levar o Carlos, mas papai se opôs, achava que precisava de um filho homem para ajudar em casa. Aí eu entrei na questão e perguntei: 'Como ajudar se aqui ele não vai passar de um carregador de sacos de cimento? Ele vai, sim. Nós vamos desobedecer o senhor, mas ele vai'.
ET – E foi...
Iris – Sim, e lá ele trabalhava, fez cursos, faculdade... No princípio foi até muito difícil, porque não havia dinheiro. Às vezes ele não jantava, porque não tinha dinheiro e ia pra faculdade. Depois de alguns anos, ele fez um bom pé de meia, já formado, ele foi para Uberlândia, onde vive até hoje. A vida da gente era muito difícil, hoje vivemos num paraíso.
A Telefônica foi criada por um grupo de empresários e lideranças da cidade, no final dos anos 50... Não sei ao certo. Éramos muitos funcionários. Telefonistas eram várias, porque eram 24 horas de trabalho por dia. A dona Maura, Fernanda, uma filha da dona Rita Parteira, Sônia Cirilo, Letícia Borges, Darcy, Alice e já no final, Tânia Pereirinha. Além de nós, telefonistas, havia o pessoal da manutenção, escritório, o mensageiro: o Zé, o Joanico, Eurípedes, Paulo, faziam a manutenção; Chiquinho, Tereza e Weber trabalhavam no escritório e, o Jerônimo era o mensageiro. Ele ia até as residências avisar que havia alguma ligação.
ET - Enquanto isso, a ligação ficava em aberto, aguardando?
Íris – Não, o Jerônimo avisava que havia uma ligação e a pessoa, então, se dirigia até a Telefônica e só então completávamos a ligação, retornando a ligação à cidade de origem e comunicando que a pessoa estava pronta para atender, aí eles completavam a chamada. No princípio, não havia telefones fixos nas residências, os primeiros foram instalados nas empresas que trabalhavam com cotação de cereais, café, principalmente, arroz, gado...
ET - Que tempo vocês levavam para fazer uma ligação interurbana dessas?
Íris – Nem mesmo em nossa central havia DDD (discagem direta à distância). Uma ligação, por exemplo, para Santos era feita através de links. Primeiro, chamávamos o Posto do Damásio, na descida do povoado das Sete Voltas, ou o Posto de Guaxupé, dali as telefonistas nos ligavam com São Paulo e de lá para Santos. Uma ligação dessas levava de seis a oito horas para ser completada. Eram comum os interessados pedir a ligação à noite para falar no dia seguinte. À meia-noite, começávamos a providenciar a ligação para eles falarem às sete da manhã... Lembro-me bem do Sr. Alberto Vieira ir até a Telefônica pedir um interurbano para falar no dia seguinte. Quando a ligação saía a gente gritava ele no escritório que ficava em frente à Telefônica. E tem uma coisa, na temporada de chuvas eram dois, três dias para completar a ligação. Era um tempo difícil, o mundo não falava como hoje, mas era o meio que havia para se comunicar.
ET (Walmor) - E ali, intermediando todas essas ligações, é claro que vocês tinham que ter uma ética e uma fidelidade ao segredo, uma discrição a toda prova, porque sempre alguma coisa era revelada. Digo isso porque, naqueles tempos difíceis da ditatura, quando me prenderam, você ficava muito apreensiva e chegou a me ajudar... Lembra disso?
Íris – Lembro, claro. Sofria, chorava, rezava, mas prefiro não comentar e continuar mantendo minha ética e fidelidade em tudo.
ET - Quando a Telefônica fechou?
Íris - Na verdade não fechou, foi encampada pela Telemig, quando começaram as ligações interurbanas feitas através da discagem direta à distância, o DDD, mais ou menos no início dos anos 70. Acho que ela durou pouco mais de 20 anos. Só eu trabalhei na Telefônica de Sacramento durante 14 anos. Depois do DDD, ela permaneceu mais um pouco, apenas para atender a Usina de Jaguara, que estava sendo construída.
ET - Com quatro anos apenas de escolaridade, foi difícil conseguir um novo emprego?
Íris - Não, fui para Uberlândia e comecei a trabalhar no Café Caxuana, do Dorival Sortino, o mesmo que levou o Carlos, meu irmão para São Paulo. Lá permanecei apenas quatro meses. Depois fui para a Construtora Araguaia Minas, empresa de pavimentação de estradas, e lá permanecei por 23 anos, até me aposentar. Mas depois, continuei ainda na empresa até 1999, quando retornei a Sacramento para cuidar da mamãe. Na época, a Maria Alice não queria que eu voltasse para Sacramento, preocupada e com medo de que eu entrasse em depressão, porque lá eu tinha uma vida muito ativa.
ET – Vamos agora falar da Íris voluntária, da Íris filantropa que começou a ajudar famílias carentes e entidades desde que foi para Uberlândia...
Iris - Na verdade, em Uberlândia, eu iniciei os estudos do Espiritismo e comecei a ajudar no Centro que frequentava, durante as campanhas de Natal. Como lidava com muita gente fazia campanha com as empresas angariando presentes. E como eu vinha todo final de semana para Sacramento para ver a mamãe, comecei também a visitar os velhinhos do Lar São Vicente, desde 1988, e continuo até hoje. Eu vinha nas sextas-feiras, chegava e fazia os bolos pra levar para os 'idosinhos'. Muitos daqueles primeiros já faleceram... Todo sábado estou lá para uma visitinha levando alguma coisa.
ET - Mas há os bordados também...
Iris - Os bordados são muitos. No início eu ajudava a Amélia Bessa França Araújo , que coordenava essa parte. Depois do falecimento dela, pediram-me para assumir o cargo, pagar as bordadeiras, fornecer o material. E, como eu não tenho recursos pra fazer isso, decidi aprender a fazer estolas de tricô, que vendo no inverno e é com esse dinheiro que compro os materiais e pago as bordadeiras que fazem o ponto cruz, que não sei fazer. A dona Neusa do Delegado me pediu para ajudá-la com o hospital do Câncer de Uberaba, e aceitei. Mas um dia pensei: 'Meu Deus, está pouco, posso trabalhar mais e fazer mais estolas'. E assim foi. Desde então, confecciono duas peças iguais, uma para o bazar do Colégio, outra para o Hospital Hélio Angotti.
ET – Não tem tempo certo, faz o trabalho o ano inteiro?
Íris – Sim, não paro, porque o Colégio realiza o bazar quatro vezes por ano e, para o Hélio Angotti a produção vai no final do ano. Mandamos pra lá panos de prato, forros de bandeja, avental, tolhas de lavabo, tolhas de mãos e jogos de toalhas de banho. A partir de novembro, iniciamos os bordados com motivos natalinos. E lembro também que tenho três amigas que me ajudam a bordar, a Noninha, a Marluce e a Diva e, duas no croché, a Irene do LC e a Ione. Todas voluntárias, fazem por amor, a quem sou muito grata. E as demais eu pago.
ET – Sabemos que você faz mais... Além disso, a 'Casa da Mãe Joana' acolhe todas as pessoas...
Íris – (Dando uma boa rizada). É muito bom!!. Até forasteiros vem pedir alguma coisa. A Valdice é de casa. Inclusive, há pessoas que me criticam por colocá-la na mesa pra comer, mas ela é gente que nem a gente. Seja lá a hora que for, porque ela não tem horário. Ela chega, eu esquento a comida e boto o prato na mesa... Ela é um ser humano. Só não a atendo de madrugada. Ela aparece aqui e começa a gritar: “Dona Íris, dona Íris'!! Nesse horário eu não abro, porque ele pode estar sem os medicamentos e ser perigoso.
ET - Com a violência já chegando no interior, você não tem medo algum?
Íris – Sim, claro, fico sempre prevenida, especialmente com algumas pessoas estranhas. Dias desses, eu estava acabando de fazer o almoço, quando um homem bateu. Chegou e pediu: “Dona, pelo amor de Deus, me dá um prato de comida, faz três dias que não como”. Na hora, pensei: 'Meu Deus, o que faço?'. Fiquei com o coração apertado, mas não deixei entrar. Pus a comida no prato e lhe entreguei lá fora. Se vocês vissem o rapaz comer, fazia dó. Ele comeu assentado lá de fora. Puxei conversa, ele disse que é do Maranhão, mas não tive coragem de mandar entrar, achei ruim isso, mas...
ET - Mas nem tudo é trabalho, né? Fale um pouquinho do chá nas tardes de sábado...
Iris - (Risos) Ah, isso é sagrado. Todo sábado reúno as amigas para o chá, não falta o tradicional pão de queijo. Mais como uma forma de distração, de encontro. E aí jogamos conversa fora. Isso me dá prazer.
ET - O que a Íris herdou da mãe Joana e do Nicanor?
Iris - Acho que a caridade, a bondade, a partilha. Papai matava um porco, mamãe dividia com 17 famílias vizinhas, era um pedaço para cada vizinho. Ela dizia: “Eu tenho que dar, porque quando eles matam eles mandam pra nós também”. E esse dar as coisas na porta vem de papai. Ele dizia: “Bateu na porta, pediu, dá. Se pedir até dinheiro, dê,. O que ele vai fazer com aquele dinheiro é dele. Nossa intenção é ajudar, a gente fez a nossa parte...”
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