Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Heigorina Cunha: Como doar amor durante 90 anos

Edição nº 1357 - 12 Abril 2013

Heigorina Cunha faz aniversário no próximo dia 16, quando completa 90 anos. E que vida! São 90 anos de superação, doação total ao próximo e exemplos, que lhe renderam grandes lições, como ela mesma define, “um grande aprendizado da vida humana e espiritual”. Heigorina é daquelas pessoas que fazem a diferença em todos os aspectos, transmite a serenidade dos bons no olhar e na fala, e cativa. Tudo isso fez com que reunisse ao seu redor, amigos, doadores e voluntários que a ajudam a manter a confecção de enxovais de bebês há 80 anos– isso mesmo, era ainda uma menina quando começou a fazer com a mãe as primeiras peças; voluntários que ajudam na obra de evangelização que dirige desde 1961, ao lado das irmãs, Neoni Cunha (Nizinha) e Ionete Cunha Bessa; amigos benfeitores que lhe possibilitaram construir um hospital para reabilitação de crianças portadoras de necessidades especiais... Nas mãos de Heigorina, a cidade vê e aplaude, hoje, uma grande obra social de amor ao próximo, iniciada pelo tio Eurípedes Barsanulfo; cultivada pela avó, Jeronyma Pereira de Almeida (Vó Meca); abraçada pela mãe, Eurídice Milta Cunha (Sinhazinha), e perpetuada pelas suas filhas... Veja a seguir a entrevista que as irmãs, Heigorinha e Ionete Cunha concederam ao ET. 


ET - Vamos falar de vida, da grande vida de Heigorina e da família, até porque o trabalho de vocês hoje é a extensão de uma obra que vem de família, portanto não dá para desvincular a sua história de vida e a família...

Heigorina - De fato, mamãe, Eurídice Milta, era ajudante direta de tio Eurípedes, e ela conheceu o papai, Ataliba José da Cunha, que nasceu na Fazenda Santa Maria. Quando foi para se casarem, mamãe hesitou, porque teria de deixar a grande tarefa ao lado de tio Eurípedes para assumir a vida de esposa, de companheira, de mãe. Aí, ela pediu ajuda espiritual a Dr. Bezerra de Menezes, que a aconselhou a se casar, pois ambos tinham um grande trabalho a realizar. Assim, ela aceitou o conselho e se casaram no dia 8 de março de 1915, mas ela continuou o seu trabalho com tio Eurípedes até o seu falecimento, em 1918. Ela deu continuidade à obra ao lado da mãe, Vó Meca, e dos irmãos. Foi um grande trabalho em prol dos menos favorecidos. Mamãe ajudava a quem precisasse. Com mamãe nasceu a Vila Sinhazinha.  Mamãe faleceu em 1961, aos 72 anos. 

 

ET – Vocês eram quantos filhos?

Ionete – Éramos 12 filhos de sangue e três do coração, ao todo 15 filhos: Heigor (Lúcia Fidelis) foi o primogênito; a segunda filha de meus pais chamou-se Heigorina, que faleceu pequenina. Depois veio o Ivomir, que também faleceu bebê.  Na gravidez seguinte, nasceu o outro Ivomir (Augusta Florentino), que faleceu em 2001, e em seguida, nasceu o Vigilato (Matilde Cavalcanti). E veio então à luz, outra filha, que papai pôs o nome de Heigorina, na ordem ela foi a sexta filha. Depois, ainda vieram o  Lenoir (Maria da Graça), Neoni, Roberto, Lineu, Adolfo, e eu, a caçulam, Ionete (Romeu Bessa). Os filhos do coração e da alma, são a Leonie (Rui Pereira); Maria Rezende da Cunha e Paulo Fonseca e Silva. De todos os filhos, restamos, Leonie (91), Heigorina (90), Nizinha (86), Maria (67) e eu (80), todos os demais faleceram, alguns ainda criança. Eu sou a única que nasceu aqui na Chácara, os demais nasceram num casarão que não existe mais, exatamente ali no cruzamento da av. Capitão Borges com a rua Comendador Machado, a rua do Colégio. Ali ficava a casa de nossos pais, que depois mudaram para a chácara, herança de família, cujas partes dos irmãos herdeiros papai foi adquirindo.

 

ET – Com que idade Heigorina teve poliomielite?

Ionete - Mamãe contava como foi o início de tudo e depois a gente foi crescendo e vendo-a superar a doença e as limitações. Heigorina tinha um ano e quatro meses, andava e brincava, quando, de repente, sofreu uma febre muita alta. Foi uma semana de febre, quando ela melhorou, havia perdido a força das pernas... Ela não conseguia ficar de pé. Heigorina era uma criança linda, muito viva, só que não havia tratamento naquela época. O médico a desenganou, como dizíamos na época, não tinha cura, mas ela sobreviveu, só não tinha condições de permanecer de pé. Mamãe a amparava, colocava-a de pé, lutou com todo zelo de mãe, até que Heigorina conseguiu ficar de pé. Mas aos poucos e ao longo dos anos foram aparecendo as sequelas na perna, que foram ficando frias, perdendo a musculatura... Mesmo assim, mamãe não desistia nunca. Heigorina também sempre demonstrou muita força. Ela conseguia andar jogando a perna. 

 

ET – E suas lembranças desse tempo, Heigorina?

Heigorina - O tempo passava e com ele fui crescendo. Para eu não ficar muito triste, mamãe me pôs para ajudá-la a fazer roupinhas, ela passou a trabalhar em favor das crianças. Fazia roupinhas, tudo costurado à mão e também fazia sapatinhos de tricô. Como não tinha condições de ir à escola, o Prof. Antenor Germano vinha me dar aulas aqui em casa, matemática, português, desenho, caligrafia, desde a alfabetização. O professor tinha muito amor por nós.  Ele chegava e ia dizendo: “Doninha, vamos lá à matemática”. Ele acostumou tanto a vir aqui, que depois continuou, não lecionava mais, mas vinha todos os dias tomar café.  

 

ET – Chegou a estudar em alguma escola da cidade para complementar esses estudos?

Ionete – Sim. Eu me lembro que íamos para a escola e a Heigorina não conseguia nos acompanhar, por conta de sua deficiência física. E como, às vezes, ela chegava atrasada, a diretora, Da. Maria Crema, deixava uma ordem para o porteiro deixá-la entrar.  Isso foi logo depois desses estudos elementares com o Prof. Antenor. Ela decidiu prosseguir e fez o que chamávamos na época, de curso de adaptação, na Escola Normal de Sacramento e, depois, o curso Normal.

 

ET - Todos dizem e podemos comprovar pelas fotos que você sempre foi uma menina muito bonita, uma bela moça. Nunca pensou em se casar?

Heigorina - (risos) Não... Tinha muitas amizades, primos, amigos, mas nunca quis namorar. Namoro é muito compromisso, nunca pensei em me casar, meu desejo era dedicar-me mesmo às crianças. 

 

ET – Lembra desse tempo, Ionete, quando Heigorina iniciou suas prendas domésticas, costurando suas primeiras peças?

Ionete – Sim, como me lembro! Com a força e persistência de mamãe e a força de vontade dela mesma, ela foi dominando. E aí papai comprou uma máquina que, além do pedal, tinha também a manivela, para movimentá-la com uma das mãos. Com ela, Heigorina aprendeu também a costurar. E foi bom, porque, logo ela pôs a perna esquerda para funcionar, pedalando, e aí o trabalho rendeu, fazia muito mais roupinhas. E essas roupinhas se transformaram em enxovaizinhos de bebê que são confeccionados até hoje. Esse trabalho maravilhoso de minha irmã tem mais de 80 anos, beneficiando milhares e milhares de crianças. 

 

ET – Como foi o seu tratamento para superar a poliomielite, chegou a fazer alguma cirurgia?...  

Heigorina – Me lembro de meu primeiro médico aqui em Sacramento, o Dr. Cunha, mas não havia tratamento na época. Muitas crianças faleceram vítimas da doença. Fiz também várias cirurgias, mas bem mais tarde, quando papai me levou para São Paulo. Não, para me curar da pólio, mas por consequência dela, porque houve um estrangulamento da bacia através da cabeça do fêmur, eu sentia muitas dores. Fiquei lá mais de seis meses, com o gesso cobrindo quase todo meu corpo, até quase o  pescoço.  Depois, fiz novas cirurgias, inclusive em Uberaba e Ribeirão Preto. O curioso é que os médicos diziam que eu ficaria com a perna dura, sem poder dobrar. Mas não me dei por vencida...

 

Ionete – É verdade, a força de vontade dela era tão grande, que ela mexeu a perna e o pé e começou a andar usando uma bengala. Com o tempo chegou a caminhar livremente, sem nenhum apoio. Porém, mais tarde, voltou à sua companheira, como ela mesma dizia, a bengala. E, de repente, Heigorina começou a fazer massagem em crianças com paralisia e colocou um sonho na cabeça, dizendo que iria construir um hospital de reabilitação, porque ela se recuperou muito bem. Nesse tempo, ela começou a manifestar a espiritualidade. A cadeira de rodas chegou em sua vida só bem mais tarde, já na velhice, há poucos anos. 

 

ET – O que a moveu para iniciar esse trabalho de massagear crianças com paralisia infantil?

Heigorina – Meu grande amor por elas. E depois, eu me recuperei tão bem que queria prestar essa ajuda. Eu usava a mesa de passar roupas, cobria com um cobertor e um lençol e fazia as massagens com água quente. Mas o doutor Bezerra de Menezes já começara a me ditar os exercícios. Algum tempo depois, construímos a salinha ao lado do Quartinho de Tio Eurípedes e passei a mesa pra lá.

 

ET – Podemos dizer, então que ali no Quartinho de Eurípedes nasceu a Casa Assistencial Bezerra de Menezes, hoje transformada em um grande hospital, em Santa Maria...

Heigorina – Sim, em princípio era para ser construído aqui mesmo, nos terrenos da chácara. Papai decidiu que seria feito aqui, mas a turma de Santa Maria começou a achar que o hospital deveria ser lá e assim foi. Não sei se foi bom ou não ter sido construído lá, porque a chácara aqui é um patrimônio tombado. A reunião para falar do hospital foi no dia 2 de novembro de 1966, depois do culto aqui em casa. Esse hospital é de grande serventia para Sacramento e Conquista. As prefeituras fornecem o transporte para levar as crianças e ali elas fazem todo o tipo de exercício locomotor, através de profissionais especialistas.

 

ET – O sonho da menina Heigorina, acometida de paralisia infantil, que massageava as perninhas das crianças com água quente, e que queria construir um hospital para elas tornou-se realidade. Como foi para construir aquela grande obra?

Heigorina – Graças a Deus e a Jesus, recebemos o apoio de nossos confrades de todo o Brasil. Eram telefonemas, visitas valiosas, promessas cumpridas, por isso, a obra não parou nem um dia por falta de recursos.

 

ET – Costureira, 'fisioterapeuta' de crianças, construtora de obras sociais e, não contente, aprendeu também 'Braille' para ajudar os amigos... Como foi essa história. 

Ionete – É verdade, Heigorina aprendeu Braille em poucos dias, conseguiu todo o material desde o papel até as máquinas. Tudo começou com a perda da visão de um jovem amigo, o Euridcles, depois chegaram outros alunos, o João Barbosa (Carteiro), Olavo Wilson, as irmãs Da. Luíza e Da. Candinha. O Quartinho de Eurípedes Barsanulfo virou um mini Instituto dos Cegos, com livros e com muito trabalho. Os alunos e a professora transcreveram para o Braille inúmeras obras, trocavam correspondências, principalmente com  o Instituto dos Cegos de Uberaba e do Rio de Janeiro. 

 

ET – Você se referiu ao Quartinho de Eurípedes, para onde transferiu sua mesa de massagens... Como foi que esse quartinho veio parar aqui na Chácara Triângulo?

Heigorina – Tio Eurípedes morava no casarão onde funcionava também o comércio do pai, a Casa Mogico. Parte dele foi desapropriado pelo poder público, para ser construído os Correios de Sacramento. E o que sobrou continua lá, como uma casa comercial, ali junto ao prédio dos correios. Assim que soube que iam desapropriar o prédio, falei com papai que iria comprar o quartinho onde ele dormia e trabalhava. Então, ele me perguntou: “A senhora tem dinheiro?” E eu respondi que tinha. Eram minhas economias guardadas em casa, com o dinheiro que meus irmãos, Vigilato e Lenoir, enviavam do Paraná. Minha intenção era a de comprar uma ximbica com esse dinheiro (risos). E acabou que o sonho de comprar uma ximbica para mim, virou a compra do Quartinho de Tio Eurípedes.

 

Ionete - O prédio da Casa do vovô Hermógenes Ernesto Araújo (Vovô Mogico) e vovó Meca pertencia, nessa época, ao seu genro, José Rezende, esposo de uma das filhas do casal, a Edalides. Quando a Heigorina disse que ia comprar o quartinho, dois grandes amigos de minha irmã, o Prof. Antenor Germano e Dr. Tomaz Novelino, acompanharam todo o serviço de demolição, tijolo, por tijolo, feito pelo Sr. Pedro Zandonaide, que trocou o material da casa pelo serviço de demolição do prédio. Heigorina negociou com ele. Trouxeram tudo pra cá e construíram o Quartinho na mesma posição, com as mesmas características.   Além do quartinho do Tio Eurípedes, ela fez uma salinha de massagem e uma salinha de costura, para fazer os enxovaizinhos e aí foram chegando as companheiras voluntárias. 


ET – Qual era a ligação de Eurípedes com o casarão da família Cunha?
Ionete – Era uma ligação muito carinhosa. Tio Eurípedes dormia muitas vezes aqui, deixava o cavalinho no pasto aqui. Trazia alunos para aulas de botânica e astronomia. A ligação dele com a chácara era grande... Aliás, este casarão aqui pertencia à Vó Meca, mãe de Eurípedes. Minha Bisa morou nesta chácara. Hoje, penso que papai foi o escolhido, porque quando os irmãos quiseram vender suas partes da herança, papai foi comprando dos herdeiros... E aí está o patrimônio preservado. 

ET - Para o Quartinho de Eurípedes foi também transferido o Culto das Nove, dirigido por Heigorina até hoje. Quando tudo começou?
Ionete - Os cultos começaram com Tio Eurípedes, em 1904, lá em Santa Maria. Tio Eurípedes tinha ido ter com Sinhô Mariano e ali se tornou espírita. Seu pai, vovô Mogico, não aceitou.  Tio Eurípedes foi então morar em uma casinha, onde é hoje o Colégio Allan Kardec. Vovô Mogico lhe dera um prazo para pensar e decidir. Tio Eurípedes lá ficou, realizando o culto, época em que construiu o Colégio, inaugurado em 1907, e prosseguiu na doutrina. Mais tarde tio Eurípedes voltou para o seu lar e toda a família abraçou a sua causa. 
Quando tio Eurípedes faleceu, em 1918, Vó Meca, que já se tornara espírita, continuou a realizá-lo em sua casa, na Casa Mogico. Todos nós nos reuníamos lá, aos domingos, para o culto, mas a mamãe fazia o culto em casa também, aqui na Chácara. Com a morte de Vó Meca, em 1952, mamãe, que sempre estivera ao lado de tio Eurípedes nos trabalhos, continuou sua obra. Assumiu o culto e passou a realizá-lo na sala de nossa casa, aqui na Chácara Triângulo, sempre aos domingos, reunindo toda a família.   

ET – Quando você passou a dirigir o culto, Heigorina?
Heigorina - Quando a mamãe faleceu, em 1961, o papai falou que eu e Nizinha seríamos as responsáveis pelo culto, que continuou em nossa casa. Com o falecimento de papai, no ano de 1971, e como a participação de pessoas vinha sempre crescendo, achamos que não deveria ser realizado mais na sala de casa.  Mas ficamos em dúvida, e fomos nos aconselhar com Chico Xavier, que nos apoiou dizendo o seguinte: “O culto agora é universal, leve-o para o Quartinho de Eurípedes”.
ET – E desde então, o Culto das Nove tem trazido a Sacramento milhares de peregrinos. Qual a motivação que atrai todo esse contingente de turistas a cada domingo a Sacramento? Vem de Heigorina?
Heigorina – Não. Todos que por aqui aportam é por causa do Tio Eurípedes. Ele é o servo de Jesus e quem serve prossegue... O seu trabalho é universal. Os caravaneiros se emocionam com o Culto do Evangelho, sentem as vibrações de paz dos Benfeitores Espirituais, de nossa gente, de nossa querida Sacramento. 

ET - Que lição você tira de tudo isso? No alto de seus belos 90 anos de vida, olhando para trás...
Heigorina -  Eu diria que a vida é muito bela. Foi uma vida de convivências com muitas pessoas, das pessoas mais queridas e mais próximas a partir de papai e mamãe, aos irmãos, a personalidades, artistas, políticos e gente muito importante passando pela minha vida. Sempre tive amizade com todos, independente de credos religiosos. Os padres do Seminário, Pe. Gil, o primeiro a viver essa amizade. Havia tanto respeito entre todos nós. O importante é a caridade, não é mesmo? Tive e tenho grandes amigos de várias partes do país. 
Recebi muitas homenagens, embora eu ache que não as mereça. Enfim, minha vida foi de um aprendizado sem fim, na vida real e na vida espiritual. 
ET – Da menina que amanheceu um dia com a febre da poliomielite à menina que começou costurando roupinhas, à jovem que fazia massagens às crianças, à construtora de um hospital aos portadores de deficiência, à mulher mais caridosa  de Sacramento... Todos nos orgulhamos e agradecemos muito pelo seu trabalho. Não poderíamos chamá-la de nossa 'Madre Tereza de Sacramento'?
Heigorina – Não. Madre Tereza é uma estrela de Amor. Agradeço o carinho que vocês têm para comigo. Vou me esforçar, Walmor, para ser a 'tia Heigorina' de meus conterrâneos. Muito obrigada.